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A bênção da dor no coração

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Um estudo em Mateus 5.7, preparado originalmente para a revista “Você”, da UFMBB

Bem-aventurados os misericordiosos…” Mateus 5.7

Em nosso estudo da ética do sermão do monte, estamos analisando as bem-aventuranças pronunciadas por Jesus. Chegamos à quinta, que tem uma estrutura diferente das demais. Ela é retribuidora. Explico. Nas bem-aventuranças anteriores, a pessoa era algo e por isso recebia alguma coisa. Nesta, a pessoa receberá o que ela é. Na realidade, não se diz que receberá o que é, mas que alcançará para si o que faz aos outros. É como se fosse algo que está lá, esperando por ela.

Quem for misericordioso alcançará a misericórdia. Vivemos num mundo em que o negócio é ser forte, competitivo, em que os fracos vão caindo pelo caminho. E quem deseja vencer e triunfar na vida precisa sobrepujar os outros. É a ética do mundo. Quem tiver a boca maior engole o outro. Mas o cristão é exortado a usar de misericórdia para alcançá-la para si. Vamos ver o que Jesus pretendia nos ensinar com esta bem-aventurança.

O que é misericórdia?

Em português, o significado da palavra é muito rico. “Misericórdia” vem de misere cardia, “dor no coração”. Não se trata, evidentemente, de angina ou ataque cardíaco. Refere-se a um sentimento profundo de compaixão, que faz doer o coração. É mais que “ter peninha” de alguém. No aramaico, a língua natal de Jesus, a palavra teria soado como o hebraico hesed (pronuncia-se réssed), de tradução sempre falha. Alguns gostam de traduzi-la por “amor inalterável”. É empregada mais de 150 vezes no Antigo Testamento. Em 96 delas, a Bíblia de Almeida traduziu por “misericórdia”. Em 38, por “bondade”. Nas outras, por “graça”, “amor” e “benignidade”.

A hesed dura para sempre, como podemos ler em 1Crônicas 16.34, 2Crônicas 7.3, Esdras 3.11, Salmo 106.1, 107.1, 138.8 e 26 vezes no Salmo 136. Viu que riqueza? Viu como os hebreus a valorizavam e cantavam? Hesed designa a bondade que vem do coração de Deus. É um sentimento próprio de Deus, que ele tem e usa para conosco.

Hesed se relaciona com “verdade”, como podemos ver Gênesis 24.27, Salmo 25.10, 57.3 e 89.14. Seria bom que as passagens bíblicas fossem examinadas, para se entender bem o que está sendo dito. E mais uma explicação para nos aprofundarmos no conhecimento da Palavra de Deus: No hebraico, “verdade” é a palavra ´˜êmeth. É daqui que vem “amém”. Quando você diz “amém” em uma oração, está dizendo que o que foi dito é verdade e você concorda com aquilo. Quando Jesus diz à igreja de Laodicéia que ele é o “Amém”, está dizendo que ele concorda com Deus Pai em tudo. Ele é a verdade que Deus Pai tem para dizer ao mundo.

´Úmeth nunca é uma verdade intelectual ou acadêmica, mas de caráter. Significa constância e fidelidade a um propósito. Você pode achar estranho que tenhamos optado por manter estas duas palavras hebraicas, mas elas são muito ricas, difíceis de expressar em português. Elas fazem parte do caráter de Deus. Ele nos fez promessas e se mantém fiel a elas: “…se somos infiéis, ele permanece fiel; porque não pode negar-se a si mesmo” (2Timóteo 2.13). É a essência do caráter de Deus. Ele nunca falha, nunca mente, nunca nos engana.

Vamos então deixar bem definido: É bem-aventurado aquele que tem um coração como o coração de Deus, ainda que não seja, evidentemente, no nível dele, que é o Absoluto. Mas em nosso nível. Um coração que sente dor. Dor pela miséria do mundo, dor pelas dores dos homens, dor pelo destino dos que vivem sem Cristo. É hesed, é misericórdia, é dor no coração, é sensibilidade.

Este sentimento se associa à verdade, a um ´êmeth, o caráter de Deus. Só pode ter uma verdadeira dor pelo mundo quem tem uma concordância com Deus, quem vive com ele.

Bem-aventurados os misericordiosos…”

Nos tempos de Jesus, a misericórdia era muito rara. Um filósofo do porte de Aristóteles dizia que “o escravo é uma ferramenta”. Outro personagem daquela época, Vedius Pollo, lançou um escravo às piranhas do seu aquário porque este quebrou uma taça. Hilário, em uma carta à esposa grávida, escreveu: “Se for menino, deixa viver; se for menina, tirando-a, deixa morrer”. As mulheres não tinham valor. Os escravos eram coisa. E isto na sociedade culturalmente mais adiantada da época.

É num contexto desse que Jesus fala de misericórdia. Não era para nutrir o ódio, nem cultivar a força, mas sentir dor no coração pelos sofredores. Os que tivessem tal sentimento é que seriam bem-aventurados.

Misericórdia era o sentimento de Jesus, como você bem pode ler em Mateus 9.36: “Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas…” Paulo recomendou que nós tivéssemos este sentimento: “Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus…” (Filipenses 2.5). Precisamos levar isto a sério, porque muitas religiões têm semeado ódio. Houve as cruzadas e as guerras da Reforma, há os terroristas islâmicos, há o ódio entre os grupos que se julgam mais especiais ou mais santos que os outros, e assim por diante.

Tenho muito medo dos santos aos seus próprios olhos. Alguns são tão rabugentos! Mas uma pessoa santa deveria ser bondosa. Jesus deixou bem claro o padrão para nós: “Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lucas 6.36). A igreja primitiva viveu isso muito bem. Confira, agora, lendo Atos 2.44-47 e 4.32-35. Nós também devemos viver em nível de solidariedade.

…alcançarão misericórdia…”

Conforme Jesus ensinou, o fiel é avaliado pelo que dá: “Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós” (Mateus 7.2). Em outras palavras, receberemos o que dispensamos aos outros.

Mas receberemos da parte de quem? Acima de tudo, e é isto que deve nos preocupar, receberemos de Deus. Ele devolve o que damos e não dá o que não damos: “Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai perdoará vossas ofensas” (Mateus 6.14-15). Na parábola do credor incompassivo, lemos: “Servo malvado, perdoei-te toda aquela dívida, porque me suplicaste; não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, assim como eu tive compaixão de ti?” (Mateus 18.32-35). Resumindo: assim como Deus tem hesed, misericórdia de nós, devemos ter misericórdia dos outros. O cristão provou a bondade de Deus em sua vida, logo deve ser bondoso. E quanto mais bondoso for, mais bondade recebe. Deus é misericordioso com os misericordiosos. É muito bom termos em mente as palavras de Tiago 2.13: “Porque o juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia.” Cuidado com a maneira pela qual você trata os outros. Deus tratará você assim. E se você dispensa misericórdia aos outros, o Pai celestial dispensará misericórdia a você.

Conclusão

Hoje, em nossas igrejas, fala-se muito de culto e de louvor. Parece até que a coisa mais importante que o seguidor de Jesus Cristo pode fazer em sua vida é cantar. Louvar a Deus é muito bom e agrada a ele, mas não é o mais importante na vida cristã. Faz-nos bem, mas não é o que Deus mais deseja em nossa vida. Oséias 6.6 mostra isso: “Pois misericórdia (hesed) quero, e não sacrifícios; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos.” O sacrifício era a forma mais sublime de culto no judaísmo, mas Deus quer de nós um sentimento de bondade e de amor para com ele. Este sentimento de amor a Deus transborda na direção do mundo. Jesus amava o Pai e amava os homens. Ele nos deu o exemplo. Revelou um sentimento de amor a Deus e aos outros. Se dermos isso, receberemos isso.

Adolescente, ame a Deus para amar os homens. Viva na presença de Deus para viver corretamente na presença dos homens. Seja misericordioso, e Deus será misericordioso com você.

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