Pular para o conteúdo

A CARTA AOS GÁLATAS

Um estudo preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

A data da fundação da igreja na Galácia é estimada entre os anos 46 e 47, quando da primeira viagem missionária de Paulo, que é narrada em Atos 13 e 14. O apóstolo adoeceu e teve que se tratar naquela região e aproveitou para evangelizar: “e vós sabeis que por causa de uma enfermidade da carne vos anunciei o evangelho a primeira vez, e aquilo que na minha carne era para vós uma tentação, não o desprezastes nem o repelistes, antes me recebestes como a um anjo de Deus, mesmo como a Cristo Jesus” (Gl 4.13-15). À luz do versículo 15 alguns consideram que foi uma enfermidade nos olhos.  Isto seria confirmado pelo texto de 6.11 que parece indicar que Paulo tinha algum problema de visão (“Vede com que grandes letras vos escrevo com minha própria mão”). Segundo alguns comentaristas, tal problema o acompanhou por toda a vida adulta. Teria sido uma febre ocular contraída nas praias da Panfília, região de malária.

A região da Galácia incluía Icônio, Listra, Derbe e Antioquia da Pisídia. A carta que Paulo escreve parece uma circular às igrejas daquela região. Não há cumprimentos pessoais no final, mostrando mais uma carta geral que uma carta a uma comunidade local.

Após a saída de Paulo chegaram os judaizantes. O ensino deles está bem expresso em Atos 15.1 e 5: “Então alguns que tinham descido da Judéia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes, segundo o rito de Moisés, não podeis ser salvos´” e “Mas alguns da seita dos fariseus, que tinham crido, levantaram-se dizendo que era necessário circuncidá-los e mandar-lhes observar a lei de Moisés”. Eles entendiam que o cristianismo era uma seita judaica e que os ritos judaicos deveriam ser observados pelos cristãos, inclusive pelos gentios. Foram os precursores de tantas seitas evangélicas judaizantes da história passada e da história presente do cristianismo. Os judaizantes fizeram um grande estrago doutrinário junto aos gálatas, a ponto de Paulo se sentir desapontado com a inconstância deles, como lemos em Gálatas 3.1 (“Ó insensatos gálatas! quem vos fascinou a vós, ante cujos olhos foi representado Jesus Cristo como crucificado?”). Em 4.20, ele se diz perplexo com a maneira como eles procedem: “eu bem quisera estar presente convosco agora, e mudar o tom da minha voz; porque estou perplexo a vosso respeito”. Paulo é bem preciso na sua afirmação: se alguém pudesse se salvar pela lei, pela guarda da antiga dispensação, a morte de Cristo teria sido desnecessária, como lemos em 2.21: “Não faço nula a graça de Deus; porque, se a justiça vem mediante a lei, logo Cristo morreu em vão”. Se a lei salva, a morte de Cristo foi desnecessária.

A carta é a mais polêmica de todas as escritas por Paulo. A linguagem dele em 5.12 é bem dura, chegando mesmo a ser violenta: “Oxalá se mutilassem aqueles que vos andam inquietando”. Já que querem se circundar, que se circundem até o fim, que se mutilem. É como se dissesse: “Já que fazem tanta questão da circuncisão, que se castrem logo”.  A Bíblia de Jerusalém traz a seguinte nota de rodapé: “Possível alusão à castração ritual praticada no culto a Cibele”. Ou seja, já que querem se circundar, que se castrem de uma vez e acabem com isso.  Se Paulo tinha isto em mente, estava pensando nos ritos judaicos como sendo, agora, pagãos, também. Como o culto a Cibele.

Apesar da frustração de Paulo e da dureza de sua linguagem, a carta é um dos mais vibrantes documentos neotestamentários sobre a suficiência da obra de Cristo. Vale a pena refletir sobre ela, principalmente porque vivemos em tempos de rejudaização do cristianismo, com símbolos, festas e práticas judaicas sendo trazidos para dentro da igreja. Há cristãos que gostariam de ser judeus e parecem se sentir incomodados com a simplicidade do evangelho. Mas o ensino desta epístola é simples: Cristo, somente, e Cristo acima de tudo.

UM ESBOÇO DE GÁLATAS

Vejamos um esboço da epístola, para entender bem seu conteúdo:

I.                    Introdução – 1.1-10

  1. Saudação – 1.1-5
  2. Motivo do escrito – defesa do evangelho: 1.6-10

II.                 Paulo defende seu apostolado – 1.11 a 2.14

  1. Paulo recebeu seu evangelho diretamente de Cristo: 1.11-17
  2. Paulo era independente dos 12 e de Jerusalém – 1.18-24
  3. Paulo teve sua autoridade reconhecida pelos apóstolos de Jerusalém – 2.1-10
  4. Paulo tinha tal autoridade que repreendeu a Pedro – 2.11-14

III.               Paulo defende o verdadeiro evangelho – 2.15 a 4.31

  1. Judeus e gentios são justificados pela fé – 2.15-19
  2. Crucificado com Cristo, Paulo vive na fé do Filho de Deus – 2.20-21
  3. Voltar à lei é insensatez – 3.1-5
  4. O pacto da fé é anterior à lei de Moisés – 3.6-14
  5. A lei não pode invalidar as promessas do pacto da fé – 3.15-22
  6. A lei é um aio (pedagogo) para nos levar a Cristo – 3.23-29
  7. Os crentes no evangelho não são escravos, mas filhos – 4.1-7
  8. Os ritos da lei não têm valor algum – 4.8-11
  9. A mudança de atitude dos gálatas – 4.12-20

10.  A alegoria das duas alianças: escravos e filhos – 4.21-31

IV.              Paulo defende a liberdade dos crentes em Cristo

  1. Quem guarda a lei acabou com o espaço de Cristo – 5.1-12
  2. A liberdade cristã é limitada só pelo amor – 5.13-15
  3. Os crentes andam pelo Espírito – 5.16
  4. Há uma luta constante entre o Espírito e a carne – 5.17-18
  5. As obras da carne – 5.19-21
  6. As obras do Espírito – 5.22-25
  7. A simpatia que se deve ter com os que caem – 6.1-5
  8. A lei da ceifa e da colheita – 6.6-10
  9. O contraste entre os motivos de Paulo e os dos judaizantes – 6.11-17

Conclusão: a bênção – 6.18

Analisando o esboço e lendo alguns trechos que são chaves no pensamento do apóstolo, podemos ter uma idéia do conteúdo da epístola e do relacionamento correto entre a lei e o evangelho. Esta é uma das mais necessárias tarefas, hoje: descobrir a relação correta entre o evangelho e a lei.

COMO OS GÁLATAS RECEBERAM O EVANGELHO

A Galácia era uma região composta, basicamente, de não judeus. O relacionamento entre judeus e gentios bastante era precário. Havia muitos preconceitos mútuos entre eles. Os fariseus, seita a que Paulo pertencera antes da conversão, eram muitos zelosos em fazer distinção entre puro e impuro, do ponto de vista das cerimônias religiosas judaicas. Entrando em contato com gentios, tinham muitas ordenanças para discipliná-los, cheias de preceitos tipo fazer e não fazer, como lemos em Colossenses 2.20-22: “Se morrestes com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: não toques, não proves, não manuseies (as quais coisas todas hão de perecer pelo uso), segundo os preceitos e doutrinas dos homens?”. Por sua vez, os gentios também discriminavam os judeus. Quando um deles ficava doente, “cuspiam no chão para ´˜fechar o corpo´ e ´˜isolar´ a doença” (Bortolini, p. 10). Os gálatas gentios viam os judeus como portadores de pragas. Mais tarde, séculos depois, Hitler “redescobriu” que os judeus eram a causa de todas as desgraças da Alemanha.

Paulo chegou com a mensagem de a divisão na raça humana acabou, como lemos em 3.26-28: “Pois todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.  Há um só povo, a Igreja de Jesus. O racismo, o bairrismo e regionalismo, práticas ainda existentes hoje, são contrários à fé cristã. O nazismo possibilitou o surgimento de um bizarro movimento chamado de “cristãos alemães”, que, sem necessidade de análise de seu conteúdo, já se constitui numa negação do que seja o cristianismo, em seu próprio título. Vemos o mesmo hoje: cristianismo latino-americano, cristianismo afro, e outras manifestações de ignorância do que seja o cristianismo. O cristianismo é supra-racial, supra-étnico. Não pode ser propriedade de uma raça.

Além disso, a região da Galácia era famosa por seus mercados de escravos. Por isto, Paulo usa muito, neste escrito a metáfora da escravidão.  Além disto, a região era possuidora de muitos templos erigidos a divindades pagãs. Quando eram pagãos, os gálatas eram escravos de falsas divindades, como lemos em 4.8 (“Outrora, quando não conhecíeis a Deus, servíeis aos que por natureza não são deuses”). Em Cristo chegou-lhes a liberdade, tanto do paganismo como do legalismo, como lemos em 5.1 (“Para a liberdade Cristo nos libertou; permanecei, pois, firmes e não vos dobreis novamente a um jogo de escravidão”). Em Cristo havia a liberdade espiritual e social, pois os homens são igualados. Ninguém é dono de ninguém, nem melhor que os outros.

O imperador romano espalhara estátuas suas pela região e o culto à sua pessoa era exigido. Desta maneira, ele era invocado como se fosse o protetor da humanidade. Os gálatas eram pessoas oprimidas por outras pessoas que pensavam que a vida alheia fosse uma simples mercadoria. Paulo pregou que Cristo veio nos resgatar deste “século mau” (1.4). “Século” é palavra grega aéon, que significa “sistema de valores, estado de coisas”, e não um período de cem anos. Paulo pregou para eles que Deus, em Cristo, estava trazendo uma nova ordem ao mundo. O evangelho era a mensagem de liberdade, como já vimos em 5.1, libertando a pessoa deste estado de coisas e trazendo uma nova proposta de vida. O evangelho não é uma religião entre muitas. É um estilo de vida proposto por Deus, para andarmos com ele. É a única verdade religiosa.

Os gálatas receberam a mensagem do evangelho com alegria e estavam dispostos até a sofrer por Paulo, como lemos em 4.15 (“Onde está, pois, aquela vossa satisfação? Porque vos dou testemunho de que, se possível fora, teríeis arrancado os vossos olhos, e mos teríeis dado”), tamanha a estima que lhe devotavam. Uma nova vida chegara para eles. O evangelho é sempre assim: causa alegria e traz uma nova proposta de Deus para nossa vida. Não faz sentido, conhecendo-o, vir a desprezá-lo. Não faz sentido tentar modificá-lo ou ajustá-lo a correntes de pensamentos seculares.

A CHEGADA DOS JUDAIZANTES

Com a saída de Paulo, chegaram os lobos. Há pessoas que têm prazer não em trabalhar, mas em trazer complicações. Os judaizantes eram assim. Não faziam seu trabalho, mas se aproveitavam do trabalho alheio. Lembram o chupim, um pássaro que não faz ninho, mas que coloca seus ovos no ninho de outros, aproveitando-se do esforço alheio.  Como certas denominações evangélicas e certos obreiros que gostam de pescar em aquário. Tais eram os judaizantes. Iam atrás de Paulo, aproveitando sua saída de algum lugar. Nada se sabe do que construíram, apenas que destruíam o trabalho alheio. Como alguns, ainda hoje. Quantas igrejas destroçadas por obreiros oportunistas, que alegam, em autêntica blasfêmia, que agem assim movidos pelo Espírito Santo! Destroem o corpo de Cristo em nome do Espírito! Mas o fato é que a proposta teológica deles aniquilava o evangelho e punha fim ao cristianismo. Prova disso é que eles se congregaram, por fim, numa seita, chamada ebionistas, quando Jerusalém foi destruída, no ano 70. A divisão entre judeus e cristãos ficou mais acentuada, com a queda da cidade e o fim de Israel, e eles passaram a se reunir neste grupo, que acabou pelo fim do segundo século, rejeitado pela igreja e também pelos judeus. Os judaizantes terminaram na obscuridade que mereciam.

OS ENSINOS PRINCIPAIS DE GÁLATAS

Vamos destacar sete dos pontos principais da epístola e buscar, assim, entender o conteúdo deste documento, tido como a “epístola da liberdade cristã”.  São eles: 1) A defesa do apostolado de Paulo; 2) Seu evangelho, recebido por revelação; 3) A relação entre a lei e a graça; 4) A alegoria de Sara e Agar; 5) A graça não é estímulo à vida desenfreada; 6) Os herdeiros de Deus são controlados pelo Espírito Santo; 7) O princípio da colheita e da semeadura. Os itens 5 e 6 serão considerados juntos.

A DEFESA DO APOSTOLADO DE PAULO

A tática era a mesma: desmoralizar a pessoa de Paulo para invalidar sua mensagem. A mesma tática que tantos usam hoje. Desmoralizar um obreiro, uma igreja, uma denominação, para poder afirmar suas idéias. Há grupos que tentam, muitas vezes, demonizar um obreiro, para se imporem sobre ele. No estudo de 2Coríntios, vimos que os judaizantes apresentavam cartas de Jerusalém e alegavam que Paulo não as possuía.  Ele não era recomendado por ninguém. O argumento deles era o seguinte: Paulo não andara com Jesus, pela Palestina. Só os doze é que podiam ser chamados de “apóstolos”. Paulo usurpava o título. Seu evangelho era ilegítimo. O deles, recomendados pelos doze, era.

Paulo responde que seu evangelho é verdadeiro e qualquer outro é anátema (“maldição”), em 1.6-8: “Estou admirado de que tão depressa estejais desertando daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho, o qual não é outro; senão que há alguns que vos perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregasse outro evangelho além do que já vos pregamos, seja anátema”. O que ele pregou é a verdade, a única verdade. Não recebeu sua mensagem de homens, afirma ele. Não foram os doze que lhe passaram o evangelho, mas o próprio Jesus, como se lê em 1.11-12: “Mas faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens;porque não o recebi de homem algum, nem me foi ensinado; mas o recebi por revelação de Jesus Cristo”. Quando a graça de Deus o alcançou, ele deixou tudo que era e tudo que fazia, não consultou ninguém e passou três anos na Arábia: “Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça, revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios, não consultei carne e sangue, nem subi a Jerusalém para estar com os que já antes de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia, e voltei outra vez a Damasco. Depois, passados três anos, subi a Jerusalém para visitar a Cefas, e demorei com ele quinze dias” (1.15-18) . Costuma-se pensar que foram três anos de meditações e de revelação, quando o próprio Senhor Jesus lhe apareceu e lhe teria exposto o ensino do evangelho. Só depois destes três anos é que ele foi visitar Pedro, numa visita que durou quinze dias (1.18). E os doze o aceitaram prontamente: “e quando conheceram a graça que me fora dada, Tiago, Cefas e João, que pareciam ser as colunas, deram a mim e a Barnabé as destras de comunhão, para que nós fôssemos aos gentios, e eles à circuncisão” (2.9).  Depois disto, levou mais catorze anos para voltar a Jerusalém e só foi porque Jesus lhe deu uma revelação (2.1-2). Nada precisou aprender dos doze, que nada lhe acrescentaram, e o deixaram pregar o evangelho, como se lê em 2.6-9. Em vez de lhes pedir permissão, como se fosse submisso a eles, ele chegou a repreender a Pedro, por sua dubiedade:” Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe na cara, porque era repreensível. Pois antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios; mas quando eles chegaram, se foi retirando e se apartava deles, temendo os que eram da circuncisão.  E os outros judeus também dissimularam com ele, de modo que até Barnabé se deixou levar pela sua dissimulação. Mas, quando vi que não andavam retamente conforme a verdade do evangelho, disse a Cefas perante todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, como é que obrigas os gentios a viverem como judeus?” (2.11-14). Tinha percepção bem clara do que devia pregar e como o tempo do judaísmo acabara. Mais, até, que os doze. Na realidade, Paulo foi o homem que teve a mais nítida compreensão do que significou o evento Jesus.

Os judaizantes queriam a circuncisão dos gentios convertidos para terem motivo de se gloriar. Mais ou menos como se exibissem os gálatas como pessoas a quem eles haviam convencido. Há gente que gosta de exibir troféus.  Paulo diz que não precisa desta glória carnal, mas que sua glória é a cruz de Jesus Cristo, da qual eles queriam fugir, para não serem perseguidos: “Todos os que querem ostentar boa aparência na carne, esses vos obrigam a circuncidar-vos, somente para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo. Porque nem ainda esses mesmos que se circuncidam guardam a lei, mas querem que vos circuncideis, para se gloriarem na vossa carne. Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão é coisa alguma, mas sim o ser uma nova criatura” (6.12-15). Não é sintomático que tantos tele-evangelistas varram a cruz para baixo do tapete e se orgulhem dos fiéis que pescam em outros aquários? Você vê algum deles pregar Cristo e sua cruz?  Parece que a cruz incomoda profundamente certo tipo de cristãos hoje. Eles querem o trono, queres as bênçãos, querem o Antigo Testamento com suas danças e instrumentos, querem ser levitas, mas não querem a cruz nem querem ser crucificados com Cristo, identificando-se com ele. Porque só pode seguir a Cristo quem tomou a cruz. A declaração de 6.17 (“Daqui em diante ninguém me moleste; porque eu trago no meu corpo as marcas de Jesus”), que já consideramos em outro estudo, é emblemática desta situação. Os circuncidados traziam sua marca, a da circuncisão. Ele trazia sua marca, as marcas de Cristo. Já vimos que a palavra é stigma, que tem,  como um de seus  sentidos o de “cicatriz”.  Ele também estava crucificado com Cristo, como se lê em 2.20 (“Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”). Ou seja, estava se identificando com ele, em seus sofrimentos. Paulo não era uma pessoa qualquer, um criador de casos. Era um crucificado. Ele cumprira o que Jesus disse em Lucas 9.23: “Em seguida dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. O verdadeiro cristão não é aquele que é abençoado materialmente e exibe seus bens como prova de sua fé. O verdadeiro cristão é aquele que toma a cruz e pode mostrar os sinais dela em sua vida. Seguir a Cristo não é ter uma passagem de primeira classe por este mundo, sendo abençoado materialmente, nunca adoecendo, saqueando riquezas dos ímpios (seja lá o que isto signifique), mas é ser crucificado com Cristo. Como disse Bonhoeffer, “o Cristo crucificado só pode ter seguidores crucificados”.

SEU EVANGELHO, RECEBIDO POR REVELAÇÃO

Paulo pregava o evangelho (1.8), mas não o recebera dos apóstolos e sim do próprio Jesus (1.11-12). Parece que isto foi na revelação por ele mencionada em 2.2 e no tempo em que esteve no deserto, período que durou três anos (1.17-18). Já consideramos estas passagens, anteriormente, e assim me dispenso de reproduzi-las aqui. Nas palavras de Halley, “Paulo ficou de tal modo aturdido com o golpe recebido do céu e com a percepção inesperada de ter sido errado durante toda a sua vida, que achou melhor reconsiderar os fatos; procurou a solidão para refazer-se”. Foi na Arábia que teve algumas de suas revelações, como podemos deduzir de 1.16-17. Ele não criara doutrina alguma. E recebera a incumbência divina do pregar “o evangelho da incircuncisão” (2.7), ou seja, de pregar aos gentios o evangelho sem mescla de antiguidade judaica. Os demais iriam aos judeus e ele iria aos gentios, com a missão de universalizar o evangelho (2.9).

Na realidade, Paulo compreendeu o evangelho melhor do qualquer um dos doze. Eles tiveram dúvidas e até mesmo no dia da ascensão de Jesus, mostraram que esperavam um messias político (“Aqueles, pois, que se haviam reunido perguntavam-lhe, dizendo: Senhor, é nesse tempo que restauras o reino a Israel?”- At 1.6). Paulo compreendeu com muita clareza que, em Jesus, Deus se fizera carne, morrera, ressuscitara, abrira o caminho da salvação, e que um dia voltará em glória para fechar a história.  É por causa de Paulo que temos uma visão completa da obra de Cristo. É o que o apóstolo chama, em 1Timóteo 3.16, de “mistério da piedade”. Em 1Coríntios 11.23-24 ele diz que transmite para a igreja de Corinto a mensagem que recebeu.  Mas recebeu de quem? De Pedro, nos quinze dias que passou com ele, ou do próprio Senhor Jesus? Parece-me que foi do próprio Senhor Jesus, à luz de sua palavra em 2.6, e da autoridade com que ele procede em suas cartas. Ele é absolutamente independente dos doze. No entanto, sua mensagem é a mesma mensagem dos doze. Não há um cristianismo paulino e um cristianismo petrino, no Novo Testamento. Há um cristianismo apenas, o de Jesus Cristo. Pregado aos gentios por Paulo, e aos judeus, pelos demais apóstolos.

Paulo recebeu o evangelho por revelação. Por isto, sua compreensão de Cristo é a mais profunda de todo o Novo Testamento. Não foi um dos doze, mas é reconhecido como o apóstolo por excelência. Os doze autenticaram seu ministério, aceitando-o, como temos um vislumbre em 2Pedro 3.15-16: “e tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; como faz também em todas as suas epístolas, nelas falando acerca destas coisas, mas quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, como o fazem também com as outras Escrituras, para sua própria perdição” Observe que mesmo dizendo que nas cartas de Paulo há coisas difíceis de entender, Pedro a considera como “Escrituras”, pois usa o termo “as outras Escrituras”. Esta expressão designava escritos sagrados, incluindo os do Antigo Testamento. Pedro via os escritos de Paulo como sagrados, como continuação da revelação.

A RELAÇÃO ENTRE LEI E GRAÇA

Esta relação fica bem clara em 1.11: “Mas faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens; porque não o recebi de homem algum, nem me foi ensinado; mas o recebi por revelação de Jesus Cristo”.  A doutrina da graça foi recebida por Paulo, do próprio Jesus.  Ninguém é justificado pela lei, mas somente pela graça. Isto é declarado de maneira bem clara em Efésios 2.8-9 (“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie”. Antes da graça chegar, estávamos sob a tutela da lei, como lemos em 3.23-24: “Mas, antes que viesse a fé, estávamos guardados debaixo da lei, encerrados para aquela fé que se havia de revelar. De modo que a lei se tornou nosso aio, para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio”. A lei foi um “aio”. O termo grego empregado por Paulo é “pedagogo”, que era como designava o escravo que levava a criança até a escola, para seu aprendizado. Lá chegando, sua função cessava e ele deixava a criança aos cuidados de um mestre maior. A lei foi um escravo que nos conduziu até o Mestre supremo, o ensinador das verdades de Deus, Jesus Cristo. Nele nos chega a fé e, assim, nada mais temos a ver com a lei: “Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio” (3.25).

Então, a lei é ruim? De modo nenhum! Ela serviu para dar consciência de pecado, mas não pode dar vida. Para dar vida, veio o evangelho, veio a fé, como se lê em 3.21-22: “É a lei, então, contra as promessas de Deus? De modo nenhum; porque, se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos que crêem”. Voltar à lei, com todos os seus ritos, é voltar a um passado pobre e fraco, é escravizar-se. Isto pode ser bem visto em 4.9-10: “agora, porém, que já conheceis a Deus, ou, melhor, sendo conhecidos por Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres, aos quais de novo quereis servir? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos”. Voltar ao ensino do Antigo Testamento é voltar à pobreza revelacional, à incompletude revelacional.

Os judeus orgulhavam-se de serem filhos de Abraão. Veja isto em João 8.33, 39, 53. No ensino de Paulo, Abraão não foi um homem da lei, mas um homem da fé (ele usa a palavra “fé” para designar o evangelho, a graça). Veja isto em 3.6-7: “Assim como Abraão creu a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça. Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de Abraão”. Abraão não foi judeu, mas crente, como lemos em 3.9: “De modo que os que são da fé são abençoados com o crente Abraão”.  Abraão viveu 430 antes de Moisés, que trouxe a lei. Abraão não viveu sob a lei. Ela veio depois dele. Viveu sob a graça, e a lei não podia invalidar a graça: “E digo isto: Ao testamento anteriormente confirmado por Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não invalida, de forma a tornar inoperante a promessa” (3.17). A lei teve um motivo. Foi doada até que viesse o descendente de Abraão, Jesus Cristo (compare 3.16 e 19). Vindo o descendente, a lei acabou. Quem é de Cristo é herdeiro da promessa feita a Abraão (3.29). Nós, os que cremos em Jesus, é que somos os verdadeiros descendentes de Abraão, e os herdeiros da promessa a ele feita.

A ALEGORIA DE SARA E AGAR

É o trecho de 3.21-31. Longo, mas elucidativo. Abraão gerou filhos com duas mulheres, Agar e Sara. Mas o filho de Agar teve que ser despedido, pois não era o herdeiro: “Que diz, porém, a Escritura? Lança fora a escrava e seu filho, porque de modo algum o filho da escrava herdará com o filho da livre” (4.30). Os dois filhos são do mesmo homem, mas Isaque é o herdeiro e Ismael, não. Ismael é o filho com Agar.  Isaque, o filho com Sara. Sara é a mulher da promessa e Agar, não. Por via de consequência, os descendentes de Ismael são rejeitados, e os Isaque, aceitos. Mas Paulo faz uma argumentação curiosa. Em vez de dizer que Ismael originou os árabes e Isaque, os judeus, diz ele que Ismael é o exemplo do homem da lei, pois sua mãe, Agar, “gera para a escravidão”  (4.24). Estar sob a lei é estar escravo.  Mas, quem é Agar, no pensamento de Paulo? É Jerusalém, a capital dos judeus. Eles são da lei, são filhos de Agar, são escravos: “Ora, esta Agar é o monte Sinai na Arábia e corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos” (4.25). Os cristãos somos filhos de Sara, somos filhos da promessa: “Ora vós, irmãos, sois filhos da promessa, como Isaque” e “Pelo que, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre” (4.28, 31).

A conclusão desta alegoria é dura: “lança fora a escrava e seu filho…” (4.30). Ou seja, não ao judaísmo! Nesta alegoria, Paulo declara o fim do judaísmo como sistema religioso para apresentar o homem diante de Deus e conseguir sua justificação. Pela lei, ninguém é justificado: “sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, mas sim, pela fé em Cristo Jesus, temos também crido em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo, e não por obras da lei; pois por obras da lei nenhuma carne será justificada” (2.16). Tentar justificar-se pela lei é cair da graça, como lemos em 5.4: “Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça decaístes”.

A GRAÇA NÃO É ESTÍMULO PARA O PECADO

A lei mostrava o pecado. A graça, o perdão. A lei acusa, a graça perdoa. Então posso pecar à vontade, porque estou perdoado e toda vez que confessar serei perdoado?  A resposta é bem precisa em 5.13: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Mas não useis da liberdade para dar ocasião à carne, antes pelo amor servi-vos uns aos outros”. A graça não é estímulo à vida desenfreada, mas sim para uma vida de mutualidade, para serviço aos outros.

A essência do pecado é o egoísmo. O desejo do primeiro casal, quando caiu em pecado, foi ser como Deus. Esta foi a proposta da serpente:  “Sereis como Deus”. Afirmar o “eu” é a síntese desta atitude. Como disse o teólogo Manson, o pecado é a rejeição dos dez mandamentos e a instituição do undécimo: “Tu te amarás a ti mesmo sobre todas as coisas”. Na graça, o eu não se afirma, mas o amor e o respeito ao próximo, sim. Jesus é o maior exemplo da graça, pois é o homem que se deu pelos outros. Vemos isto, de maneira clara e profunda, na atitude de Jesus relatada em João 15.13: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos”.

Toda a lei se resume num só preceito, como ele mostra em 5.14: “Pois toda a lei se cumpre numa só palavra, a saber: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Isto nos ajuda a entender a conhecida frase de Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. Porque quem ama, respeita o próximo. O amor nunca procede do maligno, mas apenas de Deus, como lemos em 1João 4.7: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e todo o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus”.  Por isto, os cristãos não se mordem nem se devoram, como diz Paulo, em 5.15: “Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais uns aos outros”. Quem vive na graça, vive no amor e, assim, respeita os demais.

A liberdade que temos para fazer o que queremos é limitada pelo amor. Quem ama nunca agirá de maneira a fazer mal a outra pessoa. E o primeiro fruto que mostra a presença do Espírito na vida da pessoa, escreve o apóstolo, em 5.22, é o amor.  A construção gramatical deste versículo é curiosa. Paulo fala de fruto, mas alista nove atributos. Na realidade, o fruto é o amor. Os oito outros atributos alistados são o amor em ação. A graça produz amor. Aqui podemos ajuntar a outra idéia, a de que os filhos da promessa são guiados pelo Espírito, no pensamento de Paulo nesta epístola. Os que são de Cristo, crucificaram a carne com paixões e concupiscências (5.24). “Carne” é a natureza humana pecaminosa. “Paixões” se refere aos instintos. “Concupiscência” significa “um desejo muito forte que prevalece sobre a razão”. Estar no Espírito significa ser dominado pelo Espírito e triunfar sobre os sentidos.

Crucificando esta natureza, os que são de Cristo passam a andar no Espírito. Passamos a viver nele quando fomos salvos. Devemos andar nele, como salvos que somos.  A salvação tem uma dimensão ética, também. É para andarmos nela. A palavra “andar”, para a mente do hebreu, tinha o sentido de “regra, conduta”. É o verbo hallak, que significava, primeiramente, “andar”, mas se tornou, depois,  sinônimo de conduta. A conduta do cristão é coincidente com sua fé.

O PRINCÍPIO DA SEMEADURA E DA COLHEITA

É o texto de 6.7: “Não vos enganeis; Deus não se deixa escarnecer; pois tudo o que o homem semear, isso também ceifará”.  Qual o sentido da frase nesta carta? O que tem ela a ver com a argumentação aqui desenvolvida? Parece que ele está pedindo respeito, como podemos ler no versículo 6: “E o que está sendo instruído na palavra, faça participante em todas as boas coisas aquele que o instrui”. Quem está recebendo a mensagem do evangelho, que “faça participante de todas as coisas boas aquele que o instrui”.  Logo a seguir, ele traz a declaração do princípio da semeadura e da colheita. E continua. Quem semear para a corrupção, colherá isto. Quem semear para o Espírito (a vida no evangelho) colherá a vida eterna. Se um obreiro semeia a Palavra de vida, os que a recebem devem ajudá-lo. Ele deve colher o que semeou.

Quem semeia para o mal, colhe o mal. É o sentido do versículo 8: “Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna”. Quem semeia para o bem, mesmo que demore, colherá o bem: “E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido” (v. 9).  Por causa disto, a prática do bem deve ser uma constante na vida dos cristãos.

CONCLUSÃO

Um comentário bem antigo sobre Gálatas se intitulava “Pepitas de Gálatas”. O autor via a epístola como uma mina de ouro e se propunha a oferecer aos estudiosos algumas pepitas deste veio. Podemos ver apenas a palavra dura de Paulo com os Gálatas e nos esquecermos de ver que ele afirma com vigor a suficiência da obra de Cristo e a necessidade de ensinarmos que o homem é salvo pela graça. Que Deus nos aceita e que mostrou na cruz de Jesus. Com o sacrifício de Cristo, o perdão é oferecido para uma salvação eterna.

Mais que ver um homem rabugento, brigando por doutrina, vejamos um homem apaixonado pelo evangelho, a ponto de dizer que estava crucificado com Cristo (2.20). E lembremos que o evangelho é, antes e acima de tudo, Cristo crucificado, poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.

RSS
Follow by Email
YouTube
WhatsApp