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UMA CRISTOLOGIA NO LIVRO DE SALMOS – 1

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Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho para a Ordem dos Pastores Batistas do Rio Grande do Norte, em abril de 2012

Admiramos-nos, por vezes, da cabeça dura dos discípulos. Está tão claro para nós! Sim, porque temos a revelação completa! Mas, mesmo com dois mil anos de cristianismo, como há confusão, ainda sobre Jesus e o conteúdo de sua mensagem, em nosso tempo!

 

Imaginem os discípulos, que em três anos tiveram seu mundo teológico, toda a sua cultura religiosa, social e até mesmo nacional, posta de ponta-cabeça! “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora”, disse-lhes Jesus (Jo 16.12). Jesus não conseguiu colocar tudo o que tinha para ensinar, na cabeça dos discípulos. O Espírito Santo viria completar seu ensino, como ele mesmo declarou: “Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora. Quando vier, porém, aquele, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas vindouras”. O ensino de Jesus seria completado pelo Espírito. O Messias não conseguiu se fazer entender por completo. As Escrituras, que são produto final do Espírito Santo, fariam isto. Na realidade, as Escrituras do Novo Testamento surgiram, em boa parte, como necessidade da comunidade cristã primitiva em entender o Antigo Testamento no que ele dizia sobre o Messias.  Neste sentido, o livro de Salmos foi bastante explorado neste sentido.

O evento Jesus foi tão extraordinário que os discípulos ficaram atordoados. Criados num rígido monoteísmo, na idéia da unicidade de Deus, de repente, tiveram a informação de que Deus era mais que uma pessoa. Era mais que Espírito. Era matéria, também. E eles viam isto se confirmar! Não era informação verbal, mas experiencial! “Quem é este?”, perguntavam-se as pessoas.  A noção de que Deus se fez homem na pessoa de Jesus pode nos parecer mais tranquila, hoje, mas naquela época foi algo muito difícil de aceitar. E lembremos que, no terceiro século do cristianismo ainda havia discussões teológicas para definir doutrinas sobre a pessoa de Jesus. Imaginemos os apóstolos, então.

 

A comunidade cristã primitiva precisou se explicar e precisou  explicar o que acontecera com ela. É notável, em Atos, que os primeiros cristãos não estavam querendo sair do judaísmo. Eles se consideravam como judeus e ainda não tinham enxergado o alcance de sua missão e o de sua própria existência. Eles se viam como mais uma das muitas seitas judaicas e tentaram harmonizar sua situação com o judaísmo até o momento narrado em Atos 15. Em Atos 5.17, os saduceus são vistos como uma seita judaica. Em Atos 15.5, os fariseus é que são assim chamados.  Em Atos 24.14, o cristianismo é chamado “caminho” e tido como seita judaica. Paulo também o chama assim, em Atos 22.4. O nome se confirma em Atos 28.22, na boca dos judeus que moravam em Roma. O próprio Lucas o chama assim, em Atos 24.22. Eles tiveram que reinterpretar o judaísmo e as Escrituras do Antigo Testamento.

 

Na tentativa de se explicar e se justificar, a comunidade cristã primitiva se debruçou com seriedade e sob a inspiração divina, no estudo do Antigo Testamento. Quando analisamos os sermões de Pedro, no dia de Pentecostes (At 2)  e no sinédrio (At 4) vemos que eles estão cheios de alusões ao Antigo Testamento. Chama a atenção o fato de que muitas destas passagens são do livro de Salmos.  A comunidade cristã primitiva descobriu que este era o livro mais adequado para se centrar na sua pregação e no exame do fenômeno Jesus. É curioso que textos que nos são tão preciosos, como Isaías 53 não são tão explorados como Salmos. Para entender Jesus, a igreja primitiva foi ao livro de Salmos. Por quê?

 

POR QUE SALMOS?

A resposta é muito simples. O livro de Salmos trata dos anseios humanos. Eles, os salmos, nos falam de  sentimentos pessoais de frustração, de dor, de medo, de pedido de vingança. Falam da dependência de Deus, dos sonhos, das orações por justiça, por intervenção divina.  Mas também nos falam dos sentimentos coletivos. A nação pede ajuda quando está assolada por crise econômica motivada por seca ou por alguma praga de gafanhotos. Pede ajuda quando experimenta medo diante de um inimigo militarmente mais poderoso. Pede perdão quando experimenta o juízo divino. Espera socorro divino. Projeta sua confiança para um libertador ou um salvador. Tudo isto é material para dar substância a um Messias.

 

Os Salmos trazem também as expectativas espirituais dos judeus. Sendo poesia, eles eram o melhor veículo para que os fiéis expressassem suas perspectivas espirituais. O anseio pelo Messias não poderia ter melhor espaço que as canções e hinos entoados nos cultos, ao redor das fogueiras no campo, nas lamentações à beira de sepulturas, ou nas marchas pelo deserto. Os judeus veneravam suas Escrituras e faziam uso dela não apenas no templo e nas sinagogas, mas em todas as áreas da vida.  Como o livro de Salmos é o maior livro do Antigo Testamento, consequentemente teria que ser o mais citado pelos judeus, em seu uso das Escrituras. Aliás, é o livro do Antigo mais citado no Novo Testamento. Por este aspecto, a incidência do uso de Salmos em profecias acabaria sendo até mesmo uma simples questão matemática. Mas, o fato de serem expressões práticas de fé, tornaram-nos recomendáveis para subsidiar a figura do Messias.

 

Há outro aspecto a ser considerado. Muitos dos salmos foram compostos para cânticos nacionais associados com a figura do rei de Jerusalém. Quando da entronização de um novo rei, por exemplo. A rebelião dos reis contra um deles produziu o Salmo 2, que da mesma maneira foi identificado como sendo um salmo messiânico. Era prefigurava o que aconteceria no futuro. É fácil entender isto. O rei de Jerusalém era da dinastia de Davi. Todos os reis de Judá eram descendentes de Davi.  Por mais desqualificado que fosse qualquer um deles, do ponto de vista espiritual, era um antecessor do Grande Rei, do Novo Davi, do Messias vindouro. Estes cânticos celebrando um momento específico na vida do rei de Jerusalém foram transpostos para a figura do Messias, Jesus Cristo, vendo a comunidade cristã primitiva neles um anúncio de algum aspecto da vida do Salvador. Até mesmo as crises pessoais do rei de Jerusalém acabaram prefigurando crises pessoais do Messias. Isto explica porque o livro de Salmos se tornou a maior base para se elaborar explicações sobre a pessoa de Jesus por parte da comunidade cristã  primitiva. Ele antecipou momentos da vida de Jesus. E para a igreja foi compreensível: Judá era o povo governado pelo rei da dinastia de Davi, o grupo fiel, o remanescente. A igreja se viu como o novo Judá.

 

O próprio Jesus  testificou que os Salmos falavam dele, como vemos em Lucas 24.25-27, 32, 44-46.  Ele entendeu que havia neles um testemunho a seu respeito. Particularmente na conversa com os caminhantes de Emaús ele deixou isto bem claro. Ele se viu nos Salmos. E usou-os muito ao falar sobre si. Por isso Agostinho chamou Jesus de “esse admirável cantor de Salmos”.

 

OS SALMOS MESSIÂNICOS

Os salmos que ficaram marcados como sendo testemunhos sobre Jesus passaram a chamar-se de messiânicos. Alguns já eram considerados assim, antes do advento de Jesus. por isso, só a sua aplicação ao Salvador já aponta para a messianidade de Jesus. Os salmos mais reconhecidamente messiânicos são: 2, 8, 16, 22,  24, 40, 41, 45, 68, 69, 72, 87, 89, 102, 110, 118 (os principais estão sublinhados). Uma análise global deles nos mostra que eles enfatizam três temas messiânicos que são encontrados na teologia do Novo Testamento, em seu aspecto cristológico:

 

(1) A humilhação e exaltação do Messias.

(2) As tristezas presentes e o livramento  futuro de Israel.

(3) As bênçãos futuras de todas as nações através do Messias reinante de Israel.

Estes temas foram bem assimilados na teologia do Novo Testamento, como mencionei anteriormente. Paulo tratou do primeiro em Filipenses 2.9-11, no texto clássico do esvaziamento de Jesus e o recebimento dele de um nome sobre todo o nome. Paulo não criou esta idéia baseando-se nos Salmos. Jesus havia falado de sua rejeição e de sua morte, mas também de sua ressurreição e segunda vinda. A comunidade cristã primitiva subsidiou as informações de Jesus sobre si mesmo com estas declarações dos Salmos e assim os interpretou. Vemos aqui a regra primeira de Hermenêutica: o Novo Testamento interpreta o Antigo e o Antigo subsidia o Novo. Assim, Salmos foi tornado mais claro no Novo Testamento. Ao mesmo tempo, deu base teológica para o Novo Testamento.

 

As tristezas presentes e o livramento futuro de Israel foram abordados por Paulo em Romanos  9-11. A questão foi descobrir como a comunidade anterior, a da antiga aliança, tema que estudamos na primeira palestra, teria seu espaço dentro do propósito de Deus. Crendo que Israel, mais uma vez, rejeitara a seu Senhor, e agora de maneira mais drástica com a morte de Jesus, os cristãos foram se perguntar: “e o futuro de Israel?”. Esta questão lhes era relevante até mesmo porque a maior parte deles se compunha, na época, de pessoas vindas da fé judaica.

 

A comunidade cristã primitiva teve a compreensão de que o Messias não era apenas o Salvador dos judeus, mas do mundo inteiro. Mas ela não criou isso. Ela viu isso nos Salmos (2.8, 22.31, 45.17, por exemplo). Não deixa de ser irônico que sendo tão exclusivistas a ponto de comporem uma canção pedindo que seus inimigos tivessem os filhos esmagados nas pedras, os judeus tivessem alguns de seus cânticos trazendo bênçãos para seus inimigos. A comunidade cristã primitiva foi orientada pelo Espírito para ler nos Salmos o que Israel não conseguiu ler. Aquilo que Jesus delineou no Sermão do Monte: “Foi dito… eu, porém, vos digo…”, foi posto na mente deles pelo Espírito. Ele completou o ensino de Jesus e os levou a entender que Jesus tinha autoridade para uma nova revelação.

 

Eles até reinterpretaram os Salmos. Veja-se que o Salmo 1, que é a síntese e o prólogo do Saltério, estabelece a Torah, a palavra de Deus, como critério para avaliar a vida dos homens. A conclusão do Sermão do Monte nos mostra Jesus estabelecendo “estas minhas palavras” como critério para avaliar a vida dos homens. Ele reinterpretou o Antigo Testamento, inclusive os Salmos.

 

Quais aspectos da vida de Jesus os salmos messiânicos conseguiram contemplar? Alisto, a seguir, alguns deles. Não creio que tenha esgotado a lista, mas estes me parecem os mais notáveis. Vale a pena ver não apenas os tópicos, mas as passagens, e entender seu sentido.

 

(1) Jesus é o Filho de Deus – Sl 2.7; 45.6-7; 102.25-27.

(2) Jesus é o Filho do Homem – Sl 8.4-6, etc. Se no tópico anterior sua divindade é realçada, neste, sua humanidade é afirmada.                                        .

(3) Jesus é o Filho de Davi – Sl 89.3-4,27,29. Todo rei de Jerusalém era filho de Davi. Mas se o davidismo, que já mencionei anteriormente, estava em curso, a aplicação seria bem restritiva, ignorando-se o rei de Jerusalém, e projetando-se para uma figura por vir.

(4) Jesus é mostrado como sendo Profeta ou o Arauto que apresenta os irmãos diante do Senhor- Sl 22.22, 25 e 40.9-10. Profeta, aqui, não é o pregoeiro de juízo, mas o arauto, que se chega diante do Rei Eterno e apresenta os irmãos menores, que somos nós.

(5) Jesus é Rei – Sl 2; Sl 24; etc. O Salmo 24 parece ter sido composto para a entronização da arca em Jerusalém. Isto o tornaria altamente messiânico, pois a arca era um símbolo da presença de Deus com seu povo, como Jesus é a presença divina conosco.

(6) Jesus é Divino – Sl 45.6-7; 102.25-27 (cf. com Hebreus 1.8-14). Aliás, o autor de Hebreus vai se valer muito da idéia de Melquisedeque como um tipo de Jesus. Vale-se dos Salmos, mais que em Gênesis.

 

CONCLUSÃO

É nos possível verificar porque o livro de Salmos foi um solo fértil para as idéias messiânicas. Sendo um povo que se expressava mais poeticamente do que discursivamente, que usava mais figuras de linguagem que conceitos, que se valia da tipologia (um tipo prefigurava outro), os discípulos interpretaram várias passagens como alusivas a Jesus. Isto não significa que agiram erradamente. Pelo contrário. Agiram certos, inspirados pelo Espírito Santo de Deus. Mas não pensemos em psicografia espírita, em que foram possessos por alguma entidade, ou que receberam uma mensagem num vácuo intelectual e cultural. Eles foram pesquisar em sua religião e em sua cultura o que acontecera. E descobriram aquilo que cremos de todo coração: que o Antigo Testamento em geral, e os Salmos, em particular, dão testemunho de Jesus como o Messias de Deus.

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