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O Livro De Números

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O Livro De Números

 

 

Núcleo De Estudos Bíblicos No Taquaral, Campinas

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

 

1. TÍTULO – Comecemos com a leitura de 1.1 para descobrir o título do livro. Em hebraico é Bemidbar (“No deserto”), expressão encontrada no versículo 1. Outros preferem Wayedaber Iahweh (“falou o Senhor”), tirado das primeiras palavras.  A Septuaginta, que já sabemos ter sido o Antigo Testamento traduzido para o grego, legou-nos o termo  Arithmoi. A Vulgata, a Bíblia latina traduziu por Numeri, de onde nos veio “Números”. Isto se deveu aos censos registrados nos capítulos 1-3 e 26.  Alguns outros o chamam de “Livro das Peregrinações” ou “Livro das Murmurações”. O primeiro título ainda tem sentido, mas o segundo colocaria a ênfase do livro nos pecados humanos e não na graça de Deus. Isto nunca é uma boa prática, chamar mais a atenção para as falhas do que para o poder de Deus. Seria a mesma coisa que chamar o livro de Salmos de “Os pecados humanos” ou “As crises humanas”. O livro não é a seqüência de Levítico, como se poderia pensar, embora venha logo após ele. Êxodo é continuação de Gênesis, mas aqui a seqüência se interrompe.  O último versículo do livro é 36.13, que mostra onde estes eventos narrados no livro se passaram. Ele cobre um período de 38 anos, como podemos ver comparando 1.1 com 33.38 (“segundo ano” e “quadragésimo ano”). Ele nara eventos que correm paralelos a Êxodo e Levítico.

 

2. AUTORIA – A autoria é atribuída a Moisés (Nm 33.2). Vejamos também Jo 3.14; 1Co 10.1-13; Hb 3.16,17; 10.28. São momentos históricos do livro atribuídos a Moisés.

3. TEMA CENTRAL – Quatro palavras bem definem o tema central de Números: Peregrinação, provação, rebelião, punição e proteção. Elas dão uma idéia do conteúdo do livro.  Por isto que o título “Livro das Murmurações” não é bom. Não houve apenas murmurações. Se o homem agiu, Deus também, punindo, perdoando e protegendo. Mas as quatro palavras são uma espécie de roteiro da obra.

 

4. ESBOÇO – O livro pode ser dividido em cinco partes, como segue:

 

I.                    Preparação para a viagem do Sinai – 1.1 a 10.10

II.                 Do Sinai até Cades-Barnéia – 10.11 a 14.45

III.               De Cades-Barnéia até as planícies de Moabe – 15.1 a 21.35

IV.              O encontro com os moabitas e Balaão – 22.1 a 25.18

V.                 Preparativos para a entrada em Canaã – 26.1 a 36.13.

 

Este esboço nos ajuda a visualizar os limites geográficos do livro e a verificar que a preparação para chegar ao Sinai e depois para entrar em Canaã ocupam o maior espaço. Uma questão importante mencionada antes não pode se esquecida: o livro não é uma seqüência de Levítico, como alguns poderiam pensar, mas boa parte dele corre paralelo a Êxodo e outra a Deuteronômio. Outra questão a se observar: de toda a população que saiu do Egito, todos morreram, menos Josué, Calebe e Moisés (Nm 14.30). Pelo menos houve uma vantagem. O que entrou em Canaã foi uma população jovem. E mais tarde, isto se mostrou uma desvantagem: a ausência dos que tiveram a experiência com Deus no deserto logo se apagou e a geração seguinte nada sabia de seu passado histórico (Jz 2.10). A terceira geração de crentes, em uma família, começa a perder convertidos. Quando o testemunho em casa cessa, isso acontece. Esta é uma grande advertência para nós: a necessidade de passar  nossa experiência com Deus para nossos filhos, para que eles busquem a sua.

 

5. OS GRANDES TEMAS DO LIVRO

            Vimos o grande tema central, em quatro palavras. Agora vejamos temas secundários, derivados do tema central, e que nos ajudam a ter uma visão teológica do livro.

 

(1) Desobediência, incredulidade, murmuração, rebelião  Este parece ser o tema mais forte. Hebreus 3 e 4 mostram que a grande lição de Números para nossa vida espiritual é que o crente redimido (exemplificado pela saída do Egito, em Êxodo 12) pode falhar em experimentar uma vida cristã de descanso na terra prometida de Canaã, uma vida cheia de vitória e das bênçãos de Deus, mediante um coração perverso de incredulidade e desobediência.  Não há muita diferença entre um descrente e um crente carnal (1Co 3.1-3) em termos da vida prática.  Deus nos desafia para uma vida espiritual de fé nele, de coragem diante das dificuldades (Nm 13.25-33; 14.6-9).  A desobediência, a murmuração e a incredulidade trazem o castigo (Nm 14.26-45).  A murmuração é a expressão do coração natural, carnal do homem.  Veja Números 11.1-6,33; 14.2-4,10; 16.1-3,11,30,35,41-45; 20.2-5; 21.5.  Deus se agrada num coração alegre e cheio de gratidão : Deuteronômio 28.47; Neemias 8.10; Romanos 1.21; Efésios 5.20; Colossenses 3.17; 1Tessalonicensses 5.18.  A murmuração é uma manifestação de incredulidade na bondade de Deus que controla nossa vida.

 

(2) Voto de nazireu – Números 6.1-21 – Era um ato para serviço especial de homem ou mulher.  Abstinência do fruto da videira, do uso de navalha, e de aproximação de um cadáver. Até onde me recordo, não vi na Bíblia nem li fora dela algum caso de mulher naziréia. Deveria evitar não apenas o vinho, mas uvas, passas, bolo de passas. A uva é considerada como a rainha da frutas. Não creio que a questão seja apenas o álcool, pois os hebreus, embora a Bíblia não mencione, já conheciam a cerveja, cuja produção remonta aos sumérios. Pode ser que tenha a ver com a ausência de alegria e apelo a uma vida mais regrada, mais frugal. Quanto aos cabelos, o nazireu só podia cortá-lo em um determinado dia e seria colocado sobre o fogo que havia debaixo do altar das ofertas pacíficas (6.18). À semelhança do sangue, o cabelo era tido como portador de vida. O cabelo só podia ser oferecido a Deus. O grande erro de Sansão foi que ele quebrou todos os votos, sendo o corte do cabelo o último. E não foi para Deus que o deu, mas sim para uma prostituta. O voto que ele fizera foi quebrado nas mãos de uma prostituta. E aquilo que só poderia ser queimado no altar do Senhor, provavelmente foi para o lixo. Pode se jogar no lixo algo sagrado. Precisamos ter muita cautela com nossos votos diante de Deus.

 

(3) A espiritualidade de Moisés – Ele é o personagem humano dominante do livro. O que se diz dele na obra é significativo: (3.1) Tem comunhão íntima com Deus (7.89; 12.3-8; Dt 34.10). Em 12.8 ele "contempla a forma do Senhor". O verbo hebraico é têmunah, que aparece em Jó 4.16, como "vulto". A idéia é de "representação visual”.   Como Isaías, que em meio à fumaça viu Alguém sentado no trono, em sua visão. (3.2) Intercede pelos rebeldes (Nm 11.2; 12.13; 14.17-19; 16.20-22; 21.7-9; Dt 9.18,25). Como fazemos: amaldiçoamos e nos queixamos dos que falham conosco ou intercedemos por eles?  (3.3) É homem de grande fé (Hb 11.24-27).   Mas, conforme Números 16.12-15 e 20.8-13, ainda continuou com suas falhas. Isto é confortador. Os grandes personagens da Bíblia não eram pessoas sem falhas. Foram grandemente usados por Deus, mas eram pessoas humanas, como nós. Não precisamos ser à prova de erro para sermos usados por Deus. Basta que desejemos e nos coloquemos à sua disposição. É sua graça e não nossa habilidade ou santidade que move a obra. A igreja contemporânea, com muita facilidade, se escora em métodos e recursos humanos em vez de depender da graça divina.

 

(4) Pecados propositais e não propositais – Números 15.22-36 – Os pecados não propositais podiam ser expiados com diversas ofertas, mas não os pecados propositais ou de rebeldia. Os não propositais podem ser vistos em 35.11 e 15.  Eles exigiam pagamento imediato, muitas vezes a própria vida do transgressor.  Pecados propositais não eram necessariamente delitos viciosos, mas pecados contra os quais as pessoas tinham sido expressamente admoestadas.  O homem que apanhou lenha no dia de sábado foi apedrejado, não por ser perverso, mas porque a penalidade de morte tinha sido fixada pelo Senhor (Êx 21.14; 35.2-3; Nm 15.32-36). 

 

(5) Balaão e sua jumenta falante – Números 22-24 – É uma história curiosa, com elementos um pouco míticos.  Balaão foi um profeta independente da Mesopotâmia, contratado pelo rei Balaque, de Moabe, para amaldiçoar a Israel.  Do mesmo modo que usou a “jumenta falante”, Deus usou este profeta perverso e pagão para informar Balaque e os moabitas de que era seu plano abençoar a Israel a despeito dos seus inimigos. Mais tarde Balaão perverteu a Israel por intermédio da idolatria e licenciosidade com as moabitas, razão pela qual foi morto (Nm 25.1-2; 31.8). Aliás, os moabitas já começaram, como povo, de um incesto de Ló com uma de suas filhas. Mas o triste desta história é isto: não era preciso arranjar um profeta venal para rogar pragas contra o povo de Deus. O próprio povo era inimigo de si. O Novo Testamento adverte contra o caminho, erro e doutrina de Balaão (2Pe 2.15; Jd 11).

 

(6)  Rúben, Gade, e ½ tribo de Manassés  Parece que estas tribos tinham seus motivos para não entrarem na terra prometida  (Nm 32.4-5).  Sua visão de vida estava condicionada pelo gado e queriam ganho de curto prazo. Por que iriam arriscar o certo deles pelo duvidoso de Deus? É curioso, que mais uma vez se vê, aqui, o relacionamento errado das pessoas com os bens. Elas acabam não tendo bens, mas os seus bens é que as possuem. Vejamos Hebreus 11.24-27, Tiago 4.4, 1João 2.15-17. Essas tribos foram as primeiras a serem levadas cativas para a Assíria. O certo deles acabou se revelando perigoso, e o duvidoso de Deus acabou se mostrando o certo. Muitas vezes nós agimos como estas tribos. E sofremos, depois, como elas. O duvidoso de Deus é melhor que o nosso certo.

 

(7) A bênção tríplice – Números 6.24-26. Expressava o anseio do sacerdote do que Deus deveria fazer para com seu povo: proteção, graça, paz. Lembremos que “paz” (xalom) não ausência de conflitos ou dificuldades, no hebraico, mas realização, uma tríplice correção nos relacionamentos: consigo mesmo, com Deus e com o próximo. O sacerdote deveria ser um abençoador das pessoas.

 

CONCLUSÃO – O VALOR DE NÚMEROS

            Cito um trecho do meu livro O Pentateuco e Sua Contemporaneidade, sobre os rituais de Números: “Os ritos diziam respeito a uma época, a um tempo determinado. Para nós, cristãos, os sacrifícios tiveram seu cumprimento no Calvário. Um estudo do livro de Hebreus mostra que o sistema antigo caducou e o novo, trazido por Jesus, se coloca em seu lugar. Guardar os ritos e as festas do Antigo Testamento não faz sentido. Mas ignorá-los é prejuízo, porque isso nos priva de conhecer mais a fundo a cultura hebraica, bem como de descobrir o sentido primeiro de muito de nossa fé, de descobrir a mensagem implícita nos ritos e que se tornaram grandes princípios teológicos para nós”  (p. 136).

            Assim terminamos nossa visão do quarto livro de Moisés. Um pouco complicado, não muito empolgante, mas rico de ensino. E que fiquem conosco as palavras de 6.24-26: “O SENHOR te abençoe e te guarde; o SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça; o SENHOR volte para ti o seu rosto e te dê paz”. Que assim seja!

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