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A BANALIZAÇÃO DO SAGRADO

  • por

Isaltino Gomes Coelho Filho

Estava a ler “Espiritualidade subversiva”, de Eugene Petersen. Explico-me aos críticos de quem lê: não estava ocioso. Levara uma pessoa ao hospital, esperava sua alta, e remia o tempo, lendo. Como era madrugada, fazia isto também para não dormir. Desculpem-me por estar na leitura, de novo. Não se zanguem, por favor.

Desculpas à parte, voltemos ao assunto. Este comentário dele me impactou: “Moisés não tirou uma foto da sarça em chamas para levar para casa e mostrar à mulher e aos filhos. Os serafins cantores de Isaías não estavam acompanhados de um oratório de Handel, cujo CD depois ele comprou para escutar e apreciar mais tarde. João não reduziu sua visão de Jesus em gráficos para usá-los com o propósito de entreter consumidores religiosos com visões sensacionalistas do futuro” (p. 96). A figura de linguagem de Petersen se chama anacronismo e seu uso aqui ressalta seu argumento: não podemos domesticar o sagrado. Não podemos tornar o santo em matéria de entretenimento e de comércio. É preciso zelo e temor diante do sagrado para não banalizá-lo. Infelizmente, isso acontece.

Observo a trivialização da oração e da leitura bíblica, por exemplo. Vai se iniciar uma assembléia administrativa, seja em igreja ou em assembléia convencional. É de bom tom fazer um momento devocional. Gostaria muito de pensar que nossos corações estão ali, na devoção. Sucede que, muitas vezes, é um ato rotineiro, uma obrigação a cumprir, e enquanto é cumprida, todos parecem ansiosos para que termine e se vá ao principal, a administração dos negócios de Deus. A comunhão com Deus deve cessar logo para cuidarmos dos negócios dele. Vejo, nas assembléias convencionais, pessoas conversando, usando celulares, lendo relatórios, cumprimentando-se, conversando alegremente, enquanto o momento espiritual transcorre. A parte séria, que importa e que levou as pessoas até ali, ainda não começou. O que está se fazendo é só uma “devocionalzinha”.

Nos três casos citados no relato de Petersen vemos o impacto do sagrado. A vida de Moisés foi completamente redirecionada. Sofreu uma reviravolta, quando Deus lhe apareceu. De uma vidinha tranquila e opaca para uma vida de serviço. Na vida de Isaías, algo muito curioso. Intrigante, mesmo. Ele já era profeta, pois em 1.1, Uzias está vivo, ele é profeta e tem visões de Deus. Mas depois da morte de Uzias é que ele se dispõe a ser enviado por Deus (cap. 6). Porque foi depois da morte de Uzias que ele teve uma experiência com o Santo. No caso de João, do banimento para isolá-lo a um escrito que atravessou milênios e tem fortalecido a igreja. Nos meus momentos de baixa espiritual, corro para o Apocalipse. Ele alenta minha fé. Trechos como 11.15 me revigoram: “E tocou o sétimo anjo a sua trombeta, e houve no céu grandes vozes, que diziam: O reino do mundo passou a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos”. Conforta-me saber que sirvo a um Senhor que triunfará. Não faço parte de uma causa que talvez dê certo, mas que dará certo.

Espiritualidade não pode ser uma negociação com Deus. Farei algumas coisas, agirei de certa maneira, e, em troca, receberei algumas bênçãos. Também não pode ser dimensionada como uma experiência espiritual ou extática, para nos sentirmos bem, ou mais espirituais que os outros. Uma espécie de degrau de diferenciação dos demais. Espiritualidade sempre tem uma dimensão social. Muda a vida da pessoa no trato com as outras. E tem uma dimensão existencial: muda a vida da pessoa, tornando-a útil na mão do Senhor, dócil a ele. Ela produz santidade, que não são gestos ou expressões estereotipadas. “Graça e paz” como saudação, por exemplo, parece um shiboleth. Dar “Bom dia” ou “Boa noite” é ser visto como carnal.

Santidade é dramática. Muda a vida, redireciona alvos e torna as pessoas em servas. Ela não nos eleva nem nos torna senhores. Nem é algo místico nem uma espécie de impermeabilização espiritual. Os vultos bíblicos que tiveram experiência com o Santo e foram impactados por ele, continuaram pecadores e com falhas, como os que Petersen alista. Santidade não é o nec plus ultra da vida espiritual. Não é o ápice, mas o recomeço, um constante e diário recomeço. É reconhecimento dos pecados, clamor pelas falhas, pedido de perdão, e submissão à vontade de Deus. É abandonar-lhe a vida em suas mãos.

Santidade tem sido banalizada. Pensada como gestos, barulho na adoração, expressões estereotipadas (que se forem pronunciadas em hebraico ou grego, mesmo estropiados, causam mais impressão) ou um jeito adocicado de se expressar. É uma consciência espiritual. É caráter e não liturgia. É o uso da vida, mais que a preocupação com o desfrute dos prazeres da vida.

Momentos espirituais devem ser prezados. Não podem ser rotinizados. Culto não é entretenimento, mas comunhão com o Santo, junto com a família do Santo, nossos irmãos. Atos de culto merecem respeito. A igreja, a comunhão dos santos, mesmo muito pecadores, merece respeito. Um dia ouvi a conversa de dois crentes, num ônibus: “Hoje é sessão, vamos criar o maior quebra-pau”. Fiquei pensando em pessoas que usam momentos de espiritualidade para dar vazão à sua pecaminosidade. Ou em algo que se pode usar como moeda de troca com Deus ou para impressionar os irmãos.

Santidade não é impecabilidade. É vontade de não pecar, de agradar a Deus, de estar com ele. É ter prazer na comunhão e na sua Palavra. Assim agiram os santos ao longo de toda a revelação bíblica. Eles nos sinalizam como fazer. E começa aqui: nunca tratar as realidades espirituais com irrelevância ou com banalidade. Não podemos trivializar Deus. Não o aculturemos nem o domestiquemos. Submetamos-nos a ele.

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