Pular para o conteúdo

SOMBRAS NO CAMINHO

Dra. Kátia Regina Goebel Nichele, psicóloga

Uma análise da situação psicológica-espiritual de Davi, no Salmo 42

Não há no mundo alguém que enfrente as dificuldades de maneira impassível. Por mais experientes e controlados que sejamos, sempre haveremos de esboçar alguma reação diante de situações adversas e inesperadas. É interessante observar como as pessoas reagem quando, de repente, entram num túnel durante uma viagem de trem. Alguns fecham os olhos, outras ficam estáticas, pálidas de medo, as crianças gritam, outros riem, namorados se beijam… Quando estou deprimida, durmo demais, outros perdem o sono, se viram na cama a noite toda ou andam pela casa como fantasmas. Há os que levantam à noite pra comer…

Neste salmo, podemos perceber como Davi reage ao seu estado de depressão. Ele lembra com saudade dos melhores dias da sua vida passada, quando costumava ir à casa de Deus, liderando uma multidão, com voz de alegria e louvor, em clima de festa (v. 4). Ele sofre interiormente. A sua alma está abatida e se perturba dentro dele (vv. 5, 6,11).

O verso 3 pode ser tomado tanto poética, quanto literalmente. Se o interpretarmos literalmente, percebemos que várias outras reações se desencadeavam diante daquele drama da sua vida. Davi, como muitas de nós, chorava diante de todo esse sofrimento. As suas lágrimas lhe serviam de mantimento de dia e de noite. Essa reação era perfeitamente possível, em se tratando de gente. Apesar de ser um guereiro, ele era um homem bastante emotivo, sensível. Percebemos isso nos seus salmos. Ele também, possivelmente, perdia o sono, o apetite.  A comida eram suas lágrimas. Ele não conseguia dormir. A sua depressão talvez lhe produzisse dor física (v. 10). )s seus sentimentos se alternavam com tanta rapidez, se digladiavam em seu interior. À primeira vista, parece que eles eram contraditórios. Existia, no seu íntimo uma mistura de alegria e tristeza, de medo e fé, de dúvida e devoção. De um lado, ele estava sequioso, suspirante por Deus, tal qual uma corça que busca as correntes de água (vv. 1,2). Mas, por outro lado, ele tinha a sensação de que Deus o havia esquecido. Ele não entendia por que Deus o tratava daquele jeito (v. 9).

ESSAS SOMBRAS NOS CAMINHOS SÃO ENFRENTADAS POR TODOS

Essas mesmas reações são narradas em outros salmos, não só Davi, mas também de outros salmistas que falam de suas angústias e sofrimentos diante de muitas situações adversas. Isso nos mostra que não somos os únicos a sofrer por dificuldades que nos assaltam. As sombras que enfrentamos em nosso caminho.

Eu me sinto confortável em saber que algumas das minhas reações são semelhantes às de Davi, o homem segundo o coração de Deus, reagia dessa forma ao sofrimento, por que não posso reagir de maneira semelhante?

Como você reage quando está deprimida por algum tipo de problema?  Você se debruça na janela do passado, e lembra dos momentos alegres de sua vida?  Você sente que existe como que uma tormenta dentro da sua alma? Os seus sentimentos e emoções são acompanhados de lágrimas? Você perde o apetite?  Tem dificuldade para dormir?  Que efeito as suas emoções têm no seu corpo?  Dor de estômago, dor de cabeça, dores musculares?  Os seus sentimentos são desencontrados, misturados?  Com que frequência eles se alternam?

A razão por que agimos assim é simples. Nós temos algo em comum. Somos todos feitos de carne e osso. Eis a razão pela qual não somente Davi, mas muitos homens de fé, mesmo tendo sido grandes instrumentos de Deus, viveram momentos de grande angústia e sofrimento, reagindo de modo que jamais imaginamos.

Preocupa-me o fato de muitos cristãos piedosos terem uma noção distorcida da vida cristã, no que diz respeito aos sofrimentos e reações normais dos seres humanos.  Deus nunca esquece que somos humanos.  Somos nós que, às vezes, nos esquecemos. Portanto, nunca esqueçamos que Deus, até certo ponto, nos dá o direito de reagir diante dessas situações.

AS SOMBRAS EM NOSSO CAMINHO PODEM SER FONTE DE BÚNÇÃO

Uma outra verdade que vemos nesse dramático salmo de Davi é que, apesar de passarmos por túneis tão medonhos, Deus, na sua infinita sabedoria, pode transformá-los em bênção para nós e para a vida dos outros, muitos embora, às vezes, não o percebamos no início. O Dr. Haggai nos conta em seu livro “Como vencer a dor”, que “William Cowper compôs alguns dos seus mais finos hinos por causa da dor da depressão”. Um psiquiatra disse ser “o principal dever do homem suportar a vida”. Normam Vincent Peale, comentando, em um dos seus livros, sobre este dizer tão pessimista, protestou dizendo que o psiquiatra disse só metade do que deveria dizer, e a menos importante.

Sim, à semelhança de Davi, Cowper e tantos outros, Deus pode transfomar os nossos momentos mais difíceis em benefícios para nós mesmos e para os outros.

Por exemplo, nós temos uma grande oportunidade de conhecer-nos melhor, Nesse salmo, Davi conhece os seus limites, e por isso, a sua inescapável necessidade de depender de Deus. Sem Ele, a sua vida estava arruinada.

Mas, não são apenas os nossos limites que temos a oportunidade de conhecer, mas também, as nossas fraquezas, nossas motivações e pecados. Deus usa esses momentos para marcar um encontro conosco mesmos.

GERALMENTE AS SOMBRAS EM NOSSO CAMINHO, E OS TÚNEIS ESCUROS, NOS ASSUSTAM.

Quando você repentinamente entra neles, parece que as luzes se apagam. Você não consegue enxergar. O único lugar onde há luz é dentro do vagão, onde você viaja. Mas, embora você nada possa enxergar lá fora, uma situação interessante ocorre assim que você entra num túnel escuro. De repente ao retroceder o seu olhar para o vidro da janela do trem, você se depara com sua própria imagem refletida nele, como que num grande espelho. Agora, uma das coisas que você pode vislumbrar, é a sua própria imagem.  Quando acontecia comigo, eu aproveitava para checar se o cabelo estava em ordem, como eu parecia de perfil e, às vezes, eu ficava, por alguns momentos, fitando os meus próprios olhos, como que perscrutando o meu próprio interior. Você pode não gostar de enxergar a sua própria imagem refletida na janela do trem, mas essa é uma das poucas coisas que você pode vislumbrar quando passa por um túnel.

Também podemos provar, para nós mesmos e para os outros, até que ponto confiamos em Deus. Podemos crescer na dependência do Senhor. Davi passou por essa prova (vv. 1, 2, 5, 8, 11). Para quem nos voltamos nesses momentos? Em quem confiamos para mudar a nossa sorte? Além disso tudo, é em momentos adversos que melhor podemos conhecer a Deus. Dentre os seus atributos destacam-se, nesse salmo, a sua graça (v. 8), e seu poder (v. 5,11). Oh, sim! Deus pode falar conosco no túnel da depressão ou através das Sombras em nosso caminho. Ele pode transformar os túneis da nossa vida em bênção para nós mesmos, e para aqueles que nos cercam.

OS TÚNEIS E AS SOMBRAS DO CAMINHO TÚM UMA SAÍDA.

Bastariam as bênçãos de Deus nos túneis ou nas sombras da depressão para fazer-nos enfrentar os problemas de cabeça erguida. Mas, sabemos também que os túneis sempre têm uma saída. Os túneis nunca são um fim em si mesmos. Eles existem para transpor obstáculos. Não existem situações difíceis o bastante para as quais Deus não possa suprir uma saída.

Norman Vicent Peale  nos conta sobre uma visita que fez a sua filha, Elizabeth, no colégio , anos atrás. Passando por um pátio, ele viu um relógio de sol com uma inscrição que ilustra o que estamos dizendo. Nele estava escrito: “Para quem tem visão maior o fim da sombra é a linha da luz”. Comentando sobre a frase asseverou; “A pessoa forte tem uma visão maior. E está capacitado, portanto, para ver a linha de luz ao final da zona de sombra. E nunca desespera”. Uma das coisas mais simples sobre os fatos da vida é que para ir onde queremos ir devemos apenas continuar caminhando.

Nesse salmo, apesar do seu grave problema, apesar das suas justificadas reações e desencontrados sentimentos, Davi nos mostra como buscar uma solução para essa situação aflitiva da sua alma, isto é, como sair do túnel da depressão, visualizando a luz ao final dele.

Ele admite que está deprimido.

Infelizmente, às vezes, demoramos para admitir que estamos com problemas, que de fato fomos atingidos, Até que admitamos que fomos atingidos. Até que admitamos que fomos feridos, tentamos ignorar, negamos, racionalizamos o nosso estado depressivo. O primeiro passo para sair da crise é admitir que estamos nela.

Ele repreende a si mesmo

Apesar dessa sua franqueza diante de Deus a respeito do seu estado, dos seus sentimentos, ele repreende a si mesmo, lembrando a si próprio que não há razão para continuar desse jeito, abatido.

Ele cobra de si mesmo

“Por que estás abatida ó minha alma, por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei na salvação da sua presença” (vv. 5,11). É como se Davi dissesse para si mesmo: “Ei, espera aí! Por que você está tão encurvado desse jeito? Não há razão para isso!” Ele procura repreender a sua autocomiseração, encorajar a sua fé e esperança para crer e esperar dias melhores.

Isso se aplica também a qualquer pessoa que esteja em situação semelhante. Mesmo tendo o direito de sentir os efeitos naturais do sofrimento humano, é preciso repreender a nós mesmos, a fim de não ficarmos demasiadamente curvados, ou persistirmos prostrados. Às vezes, nós cristãos, enfatizamos demais aquilo que Deus faz por nós, e esquecemos daquilo que devemos fazer, isto é, daquilo que nos cabe fazer. A nossa relação com Deus é pessoal. E além de ser pessoal, Ele nos equipou com mecanismo de defesa, de reação, de auto-ajuda, Essa relação envolve duas pessoas racionais, com vontade e iniciativa própria. Não somos robôs nas mãos de Deus, pois Ele não nos criou com essa finalidade. Ele espera de nós uma resposta racional, uma cooperação que reflita os recursos com que nos dotou. A nossa dependência de Deus não nos isenta de cumprirmos a nossa parte. Não podemos viver sem o Senhor, mas Ele mesmo nos dotou de elementos de auto-ajuda e espera que os usemos nessa operação conjunta.

Theodore Parker Ferris, em seu sermão “Dependendo de Deus”, nos adverte para o perigo de dependermos demais de Deus, no sentido de ficarmos esperando, no dizer popular, que “as coisas caiam do céu”. E, conta-nos uma ilustração que corrobora como que estamos dizendo. Diz ele: “É como se um homem estivesse velejando um barco. Se ele dependesse do vento a ponto de não levantar a vela, você diria que ele estava dependendo demais do vento. Mas, se, depois, e enquanto iça a sua vela, e a ajusta ao vento, e depende dele, no sentido de que sabe que precisa dele, e que, portanto, até onde o conhece, coopera com o vento, você diria que ele não depende demais do vento”.

CONCLUSÃO

Devemos fazer como Davi, e perguntar-nos: “Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te perturbas dentro de mim (vv. 5,11)?”. Ele reconhece que, em última análise, a solução para o seu problema está em Deus. É verdade que existe muita força dentro de nós para vencermos sentimentos negativos e problemas externos que porventura nos assaltem. No entanto, não podemos cair num humanismo que percebe o homem como tendo todo o poder para safar-se sozinho dos seus problemas.

Davi também, apesar da reação contra seu estado psicológico-espiritual, reconhece que a solução para a sua situação, em última análise, se encontra em Deus, Existem algumas belíssimas declarações de fé aqui. Ele tem fé e esperança que Deus haverá de reverter essa situação. Nos  vv.5 e 11, Deus é o seu Deus e Salvador. No v. 8, ele diz que a misericórdia do Senhor o visitará durante o dia, e a canção estará com ele à noite. No v. 9, Deus é a sua Rocha. Ainda nos vv. 5 e 11, ele, pela fé, afirma que no final ainda louvará esse Deus:”…pois ainda o louvarei na salvação da sua presença”. No salmo seguinte, que é uma extensão deste, encontramos também elementos fabulosos da sua fé em Deus. Dentre eles, a Sua justiça (v.1). Davi não somente confia que sua situação externa será revertida, mas também que, enquanto ela não chega, Deus o sustentará enquanto espera.

Essas são algumas das atitudes que podemos tomar, não somente para passarmos por túneis tão escuros em nossa jornada aqui na terra, mas também para sairmos dele.

É verdade também, e não queremos fechar os olhos para isso, que, para muitos, a vida inteira será como um túnel só, no que diz respeito a situação humanamente insuperável. Mas, mesmo que circunstâncias externas se tornem irreversíveis, a depressão, como consequência dessas situações, sempre será superável e, juntamente com estas, serão potencialmente produtivas.

É o caso do famoso compositor Beethoven. William Barclay comentando sobre a limitação física desse maravilhoso compositor, disse: “Muitos homens trouxeram aos outros uma graça que lhes foi negada. Beethoven, por exemplo, deu ao mundo a música imortal que ele mesmo, sendo surdo, nunca ouviu. É uma das maravilhas da graça que tais homens não se tornaram amargos, mas estavam contentes em ser canais de bênçãos que eles mesmos nunca puderam desfrutar”. Foi assim com outros gênios da humanidade que, embora não tenham conseguido alterar sua situação externa, aparentemente limitadora, venceram a depressão paralela, e tornaram-se pessoas altamente produtivas e realizadas.

Jesus não disse somente “… no mundo tereis aflições…”. Ele também disse: “… mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo 16.33).

Que Deus o abençoe ao passar pelos muitos túneis aflitivos dessa vida, e que você sempre possa passar por eles com o mínimo de dificuldade e o máximo de lucro.

RSS
Follow by Email
YouTube
WhatsApp