Pular para o conteúdo

A Teologia da prosperidade, mais luzes

  • por
A Teologia da prosperidade, mais luzes

No artigo "A Teologia da Prosperidade" abordei alguns aspectos do ensino que associa bênçãos, inclusive riqueza material, com fé. É um hedonismo cristão, que prega a felicidade como direito do crente. O artigo foi republicado, por pedidos, em O Batista Brasiliense   e na revista Raio de Luz . Pediram-me algo mais sobre o assunto. Eis então, baseado em análise dos livros de Ken Hagin, pai da "teologia da prosperidade".

Hagin me ajudou a valorizar a oração. Muitos de nós, eu mesmo, já usamos a oração apenas como item em ordem de culto ou como rotina. Muitas de nossas orações são vagas porque tememos pedir. Se pedirmos e não acontecer, teremos um problema em mão: Deus responde ou não? O que significa  orar "abençoa o mundo"? Nunca saberei se essa oração foi respondida. O que significa "abençoa os que vieram e os que não vieram também"?.  À parte os absurdos e a visão de oração como pensamento positivo (embora negue, ele a vê assim) e como dar ordens a Deus, subordinando-o ao homem, há  méritos em Hagin. O maior deles é crer que oração funciona, que Deus responde e quer o bem de seus filhos (embora o conceito de "bem" deva ser discutido, pois ele o vê em termos materiais).

Hagin comete vários erros teológicos, produto de interpretação bíblica por uma ótica  pré-estabelecida. Sua idéia de que a "maldição da lei" em Gálatas 3.13,14, 29 é miséria, enfermidade e morte (1), não tem respaldo bíblico global nem na experiência. O próprio Hagin morrerá. Não foi ele liberto da "maldição"? Um desdobramento das suas idéias leva a pensar que a morte deveria ter sido abolida do cenário cristão.

Seu conceito de que a riqueza acompanha os crentes (2) é absurdo. "Deus prometeu deixar ricos todos nós" é uma falácia. Deus não prometeu isto. Deus advertiu contra isto: “… os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e  em muitas concupiscências loucas e nocivas, as quais submergem os homens na ruína e na perdição" (1 Tm 6.9). Hagin tem uma visão fragmentária da Bíblia. Quem não a vê globalmente, perde muito do seu valor. Uma das regras de Hermenêutica é "a Bíblia interpreta a própria Bíblia", o que implica na necessidade uma visão global da Escritura.

A falta de teologia faz mal a Hagin. Para ele, a bênção de Abraão é riqueza material e é nossa (3). Uma visão global da chamada de Abraão, seu significado para a revelação (é o início da história da salvação), a forma em que foi expressa e seu contexto cultural, ajudariam muito numa interpretação mais equilibrada. Sua ignorância do conceito de servo no AT (o ebhed Iahweh ) o leva a fazer distinção entre "servo" e "filho" (4) e nos coloca como filhos de Deus, enquanto Israel era servo. "Israel é meu filho, meu primogênito, e eu te tenho dito: Deixa ir meu filho, para que me sirva…" (Êx 4.22-23).  Israel é filho  e, mesmo tempo, servo. Jesus, o Filho, viu-se nos cânticos do Servo em Isaías (particularmente Lucas 4.17ss). O conceito de Hagin sobre o homem é estranho: "o homem, porém, que é um espírito que habita num corpo" (5). Ele é tricotomista  mas vê o homem em compartimentos-estanques. O conceito bíblico não é este, de um espírito que habita um corpo ou um corpo que tem um espírito. Este conceito é mais grego que bíblico. É bom citarmos Collin Brown: "O homem é encarado como ser completo, e qualquer coisa que toca numa das partes afeta a totalidade. O NT concordaria com o termo 'psicossomático' mas preferiria alterar a palavra para 'pneumapsicossomático'" (6). A Bíblia vê o homem como um ser global, acabado, não divisível. Gênesis 2.7 declara-o "alma vivente" após sua formação do pó da terra e o sopro divino. A letra vav  em "e soprou-lhe" é conetiva (conjunção aditiva) e liga os conceitos, não permitindo que sejam coisas separadas.

Hagin faz a afirmação, bem discutível, de que a morte "não fazia parte da criação nem do plano original de Deus" (7). Isso vai contra a soberania e a onisciência de Deus. Tinha ele um plano que foi alterado? Foram seus desígnios frustrados? Quando o Apocalipse chama a Cristo de "Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo" (13.8) está implícito que, na eternidade, Deus já tinha planejado até a redenção por Cristo. Quando Efésios 1.4 diz "nos elegeu nele antes da fundação do mundo" fica  óbvio que a igreja existia no coração de Deus antes da eternidade. Hagin torna Deus uma figura patética, com planos que se frustram, que não sabe o que acontecerá, que não previu eventos.

A questão do sofrimento recebe dele um tratamento diferente. Seu livro que mais deveria tratar do assunto é É Necessário que os Cristãos Sofram?.. Tem quatro capítulos, mas o terceiro e o quarto são elogio pessoal, invalidando uma discussão elucidativa. Mas quando ele diz que "não temos nenhum motivo para sofrermos com enfermidades e doenças, porque Jesus nos redimiu delas" (8) fico em crise: e Fanny Crosby, a poetisa cega, que nos deu hinos como o "Que Segurança! Sou de Jesus!" (417 do HCC)? Se não tivesse ficado cega, teria Fanny nos legado hinos como este, que mais bem tem feito ao povo de Deus, em  décadas, que os livros de Hagin? O que fazer com Gálatas 4.13 onde Paulo diz que esteve enfermo? Apesar desta passagem, Hagin declara que Paulo não ficou doente (9). O que fazer com 1Timóteo 5.23, que fala das constantes enfermidades de Timóteo? Por que Trófimo foi deixado doente em Mileto, por Paulo, em vez de ser curado (2 Tm 4.20)?. Por que não exigiu ele sua saúde, já que Deus tinha o dever de mantê-lo são (expressões que Hagin usa)? As doenças são maldições ou contingências da vida?  É fácil viver onde há excelentes condições de saúde e de higiene e defender tais idéias. Vá para uma região de malária ou dengue e se exponha.

O conceito de fé de Hagin não é, propriamente, crer. É  dizer e as coisas acontecerem. É um conceito mágico: a palavra tem poder. No seu rastro vieram outras grifes evangélicas , como "poder da palavra", "maldição hereditária", "maldição do nome", etc.  O conceito fica claro em seu comentário de Hebreus 11.3, ao analisar a ordem de Deus ao criar o mundo. Hagin  declara: "Deus creu que aquilo que Ele falou se realizaria, e assim foi." (10). Daí desenvolve a idéia confusa  de que Deus tem fé e que temos que ter fé como Deus teve.  Alguns trechos de seus livros são tão confusos que não se entende o que ele propõe. Falta coerência e  unidade. O capítulo sobre "A Fé do Tipo de Deus" (11) é assim. Há conceitos inintendíveis. Hagin não se define: ora diz para se ter fé na Palavra (como ele a ensina), ora exalta uma voz interior que dizia a uma pessoa para fazer diferente do conselho bíblico como Hagin deu (12). Assim ele não perde nunca. Ele se põe como a única autoridade apta para ensinar a Palavra. Se esta não o  corrobora, ele    alega  uma revelação especial de Jesus que lhe apareceu para explicar passagens do evangelho, adicionar verdades ao evangelho e até entregar esboços de sermão (incrível!). Hagin se torna alguém inspirado no sentido bíblico, de trazer uma palavra irrefutável. Suas palavras estão em pé de igualdade com a Escritura. Ele a reinterpreta. O capítulo 6 de O Extraordinário Crescimento da Fé ,  "Como Preencher Seu Próprio Cheque Com Deus" é um dos maiores escândalos que já li, na área espiritual. Jesus lhe deu um esboço de sermão e algumas explicações sobre como fazer a fé funcionar: quatro passos cuja funcionalidade garantiu, falou enfaticamente, sorriu, etc.

Há sempre um professor de Grego ou de Hebraico (nunca identificados) que, surpresos, dizem  a  Hagin que sua interpretação, agora descoberta e nunca vista em vinte séculos de cristianismo, é correta. Hagin é mestre nisso: declara que alguém disse isso ou aquilo, mas não o identifica. E chegamos no aspecto que julgo mais grave em Hagin: ele mente, em nome de suas idéias. Alguns pregadores mentem. Quando se dá testemunho, pode-se mentir mais que os outros. Os mesmos eventos se tornam mais dramáticos, à medida que o tempo passa. Ou porque o pregador os superdimensiona ou porque um auditório  que já conhece a história exige mais dramaticidade.

Um analista de religiões (lamentavelmente esqueci-me de seu nome) observou que as biografias de santos católicos enfatizam os milagres de forma mais vívida exatamente quanto mais distante da vida do santo. Quando o fato é recente, as pessoas são mais reticentes porque se pode checar o que elas dizem. À medida que as evidências não podem ser exigidas e se depende apenas da palavra do testemunhador, os exageros aumentam.

Em O Nome de Jesus , ele diz enfaticamente que nunca ouviu falar de E. W. Kenyon, de quem copiou as idéias (13). Mas como Pieratt bem mostra em seu livro O Evangelho da Prosperidade (14), quando confrontado com as semelhanças entre os pensamentos de ambos, Hagin confessou tê-lo lido. Um plagiador alegando que recebeu algo direto de Deus. Está na companhia de Joseph Smith que transformou um romance de Salomão Spaulding, O Manuscrito Encontrado em uma "revelação", O Livro do Mórmon (15).

Ele sofreu de doença incurável e os médicos não esperavam que completasse 17 anos. Na quarta capa de seus livros diz-se que ele ficou confinado à cama por 16 meses. Em outro lugar diz ele que o período foi 18 meses (16). Após sua cura milagrosa, mesmo tendo ficado tanto tempo combalido em uma cama, foi ele trabalhar arrancando árvores. Um homem de 110 quilos se cansou antes dele porque o Senhor lhe dava força física (17). Noutro lugar, após sua cura, foi ele imediatamente estudar. Media 1,90m e pesava 41 quilos. Era chamado de "esqueleto ambulante" (18). São duas informações conflitantes. Noutro lugar, com 21 anos já era pastor (19). Num período de 4 anos, teria feito o high scholl (nosso segundo grau), trabalhou arrancando árvores e ordenou-se como pastor! Muito dinâmico.

Hagin é dramático. Seu filho cai tão estrondosamente que os sapatos voam dos pés, seu tornozelo quebra e o barulho soa como um tiro de pistola, em certo momento ele ora tão alto que o trânsito pára em vários quarteirões, etc. Ele tem uma obsessão pelo inferno. Num só dia ele mesmo foi lá três vezes (20). Até mesmo Jesus esteve no inferno e não para pregar aos espíritos em prisão, mas expiando nossos pecados! (21).

Outro problema em Hagin: como boa parte dos pentecostais, ele confunde intuição com revelação. "Captei um vislumbre" (algo que acontece com todos, enquanto pensam em algo) se torna "esta revelação" (22). Mas seu problema básico é desviar-se da autoridade normativa da Escritura e colocar-se como o padrão aferidor delas. Ele despreza o trabalho de milhares de cristãos espirituais, capacitados, bem mais preparados e espirituais que ele, em termos de interpretação bíblica. Se é necessário ele ridiculariza os pregadores bem preparados. Se é necessário, leva-os a concordar com ele. Se pode usar as Escrituras, ele as usa. Se não pode, ele as reinterpreta à luz de suas visões e visitas de Jesus (oito ao todo). Ele é o padrão aferidor.

Há hoje uma busca de exotismo, de ineditismo, em nossos arraiais. As pessoas têm comichão nos ouvidos e andam, como os atenienses do tempo de Paulo, à cata de novidades. Tem faltado seriedade no trato com a Bíblia por parte de muitos pregadores. Eles a usam para comprovar idéias, não de forma exegética e normativa, mas de forma auxiliar às suas posições. O movimento carismático tem dado uma parcela de contribuição ao caos reinante com sua atitude para com a Bíblia. Quando Lutero desencadeou a Reforma, mudou o eixo de autoridade em matéria de religião: tirou-a do Magistério da Igreja e passou-a para a Escritura. Desde Lutero esta é a postura protestante e evangélica: a Bíblia é normativa. O movimento carismático deslocou novamente o eixo da autoridade: tirou-o da Escritura e colocou-o no indivíduo. Uma situação pior que a pré-Reforma. No catolicismo, a autoridade é também objetiva, como entre protestantes e evangélicos. No carismatismo, é subjetiva: "o Senhor me falou", "o Senhor me revelou", "Deus me disse", etc. Parte do caos doutrinário hoje se deve ao abandono da Bíblia como fonte de doutrina e de edificação, que passou a ser a experiência. Usa-se a Bíblia para referendar as doutrinas produzidas pela experiência de alguém.

Nossas igrejas necessitam de um estudo sério da Escritura. Isso começa pelo tratamento que o púlpito deve dar à Palavra: a exegese e a exposição devem prevalecer sobre o sermão topical e sobre as experiências e ilustrações enlatadas. Um programa sério de estudo bíblico e a promoção de leitura sadia em nossas igrejas (como há "sabrina evangélica" em nossas livrarias!) são os primeiros passos para uma virada na situação: uma volta à Bíblia e a rejeição de sonhos, visões, experiências, ilustrações dúbias e revelações. Hagin, Valnice e outros são produto de uma situação: a Bíblia não tem sido exposta. Como essas pessoas impressionam pelo carisma pessoal, têm grande habilidade em comover outros e sabem citar a Bíblia, mesmo que de forma fragmentária, encontram um campo fértil pela falta de um ensino bíblico sério e sistemático. Assim proliferam com suas doutrinas. Bordoadas não resolvem. A solução está numa volta à Bíblia como normativa e com o desenvolvimento de um estudo bíblico sério e sistemático. Digo o que disse como preletor em um congresso  dos batistas nacionais sobre o ensino da Bíblia: nossa maior necessidade não é renovação, é reforma. Uma mudança de atitude para com a Bíblia  é o primeiro passo. Isso depende do púlpito.

CITAÇÕES

1. Redimidos da Miséria, da Enfermidade e da Morte, ps. 5 e  16
2. Redimidos, p. 9
3. Redimidos, p. 8
4. Redimidos, p. 19
5. Redimidos, p. 30
6. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, volume II, p. 379.
7. Redimidos, p. 27
8. É Necessário Que os Cristãos Sofram?, p. 27
9. Necessário…, p. 12
10. O Extraordinário Crescimento da Fé, p. 96
11. Extraordinário, p. 95
1
2. Extraordinário. p. 72
13. O Nome de Jesus, p. 8
14. O Evangelho da Prosperidade, ps. 27-31
15. Religiões, Seitas e Heresias, p. 155
16. Extraordinário, p. 15
17. Extraordinário, p. 19
18. Extraordinário, p. 55
19. Necessário…, p. 35
20. Extraordinário, ps. 38-40
21. Nome, p. 27
22. Nome, p. 32

 

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

RSS
Follow by Email
YouTube
WhatsApp