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Reflexões pós-eleitorais

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Reflexões pós-eleitorais

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

 

    Passadas as eleições, algumas ponderações devem ser feitas sobre o evento. Alguém disse que "em tempos de eleições parece que as portas de um manicômio se abrem, e os tipos mais estranhos aparecem". Um candidato a deputado estadual aparecia com vários cães no colo e pedia votos por ser "amigo dos animais". Este era o verdadeiro "cão-didato". Não sei se os cães votaram nele. Mas eu, que não sou cão e vivo numa ilha (um prédio cercado de cães que latem a noite toda), por certo que não. Tipos exóticos houve aos montes. Uma clone do Enéias (sem barba, óbvio) divertiu-nos um bocado.

 

    Como recebi cartas e telefonemas de pastores, bispos e apóstolos! Gente que nunca me cumprimentou nem se preocupou em me dar um alô, resolveu se comunicar. Se fosse a todos os cafés e almoços aos quais me convidaram, por certo que engordaria. Até de "Reverendíssimo" fui chamado. A família evangélica é uma família curiosa, mesmo.

 

    Questionei e questiono muito o argumento "irmão vota em irmão". Há irmãos absolutamente despreparados. Meu amigo Rubem Amorese, de Brasília, conta de um evangélico candidato a alguma coisa, que inquirido sobre sua proposta para o déficit habitacional, com um microfone à boca, tendo que dar uma resposta, saiu-se com esta: "Na casa de meu Pai há muitas moradas". E houve quem vibrasse, pois a "palavra foi proclamada e a palavra não volta vazia" (há sempre um versículo bíblico a ser usado nas mais estranhas situações). O problema é trazer as moradas da casa do Pai para a terra… E não deixar o BNH se apossar delas…

 

    O texto de Deuteronômio 17.15 ("não poderás por sobre ti um estrangeiro") tem sido muito usado em apoio ao "irmão vota em irmão". Impressiona o uso abusivo do Antigo Testamento para justificar posturas evangélicas. Cremos que ele é Palavra de Deus, mas cremos na revelação progressiva. Cremos que Deus deu sua última palavra na pessoa de Jesus (Hb 1.1-2). Cremos que é o Novo que interpreta o Antigo e que somos regidos pelo Novo. Cremos que tudo do antigo sistema que devemos guardar, a igreja primitiva sintetizou bem em Atos 15.19-20. O Antigo Testamento, isolado do prumo hermenêutico do Novo, não rege nossa vida.

 

    Além disto, a Igreja não é Israel. Os princípios para Israel são princípios para um reino político, terreal, geográfico, étnico. A Igreja é multirracial, multi-étnica, sem barreiras geográficas. O reino de Deus não é deste mundo (Jo 18.36). Alguns evangélicos insistem num reino deste mundo (alguns parecem pensar mesmo num império) e, o que é pior, alguns se julgam os artífices deste reino terreno que Jesus nunca quis. Têm uma visão de gueto, a mesma visão do Israel do Antigo Testamento. É uma conseqüência inevitável: estão se lastreando no Antigo Testamento. Querem transformar os evangélicos em quisto em vez de serem eles o sal e luz, para se misturarem no mundo e assim o transformarem.

 

    Há irmãos despreparados. Um candidato ao governo de um estado, evangélico, foi zombado pelos comentaristas políticos. Citava dados absolutamente errados, exagerados, sem nexo algum. Acostumado a um auditório que dizia "amém" e "aleluia" a tudo, teve que enfrentar o senso crítico de pessoas que analisam e criticam. E deu vexame. Só que o vexame não foi apenas seu. Arrastou o nome do grupo com ele.

 

    Não sinto que devo votar em um evangélico só pelo fato de ser ele evangélico. Há evangélicos pouco honestos. Ronaldo Caiado, líder ruralista, certa vez, disse sobre os evangélicos da Constituinte: "Eles estão todos aqui, ó" e bateu no bolso. Márcio Moreira Alves, colunista do Folha de S. Paulo, é autor da frase: "a bancada evangélica não exala um odor de santidade". Há evangélicos sem qualificação. Eu mesmo já recebi oferta de dinheiro para apoiar candidato, recomendando-o do púlpito.

 

    Além disto, Deus não usa apenas evangélicos. Quem use Deuteronômio 17.15 deveria lembrar de Isaías 45.1, onde Iahweh chama a Ciro de "ungido" (messhyhu, "messias dele"). Deus usou um pagão e o chamou de "messias". No Novo Testamento, poucas semanas antes de Jesus nascer em Belém, sua mãe estava longe da cidade. Um decreto de um rei pagão obrigou Maria a se deslocar para Belém, e assim se cumpriram as Escrituras. Deus não é Senhor apenas dos evangélicos. É Senhor do mundo. Usa quem quer, quando quer, e não deve satisfações a ninguém por isto. Quando quis desmontar o império soviético, usou um comunista, Mikhail Gorbachev, e o destruiu de dentro. Deus é maior do que nós. Alguns evangélicos têm a mesma teologia deformada do Israel do Antigo Testamento: pensam que têm o copyright de Deus. Somos povo de propriedade exclusiva de Deus, mas ele não é propriedade exclusiva nossa.

 

    Algumas coisas nas eleições me chocaram. Não aceito o voto de cabresto. Não aceito que igreja seja curral eleitoral nem que os crentes sejam propriedade do pastor. E sobre pastores: um pastor digno do nome não aluga púlpito nem se rende a promessas de ganho pessoal. Quando voto, não elejo um co-pastor para minha igreja, mas um representante político para mim, como cristão e como cidadão. Prefiro um não evangélico preparado, com quem me afine, que um "Seu Creysson" evangélico. Como dizia Francis Schaeffer, "seremos co-beligerantes".

 

    Por fim: a igreja não é da direita nem da esquerda nem do centro. É de cima. Não vem a reboque de ideologias e partidos. Ser cristão é ter, também, uma cosmovisão social e política, e não uma visão de gueto. Posso votar em irmão, mas que seja competente, honesto, não aventureiro, nem alguém que envergonhe o nome "evangélico", que tem sido pretexto para gente um pouco ávida. Aliás, sou batista, específico, e não evangélico, genérico. Como batista, não tenho copyright de Deus, mas tenho um credo e uma postura específicos. Meu grupo tem história sadia, doutrina e princípios coerentes. Não anda, como diz a moçada, "pagando mico" por aí.

 

    Sobre "irmão vota em irmão", lembremos que Israel elegeu Saul. E depois vieram tipos como Manassés… Nem sempre dá certo. Entre um Ciro (o da Bíblia, não o Gomes) e um Manassés, Ciro teria sido melhor opção.

 

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