Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho
Numa análise objetiva, falar de Isaías, o Evangelho no Antigo Testamento, parece ser um pouco forçado. Afinal de contas, Ezequiel é bem mais neotestamentário do que Isaías. As doutrinas do arrependimento, da conversão e da responsabilidade pessoal estão mais presentes nele do que no filho de Amoz. E elas fazem parte de nossa herança neotestamentária.
Pode-se alegar que Isaías é o mais messiânico dos profetas. Isso dependerá da ótica que tivermos para com o livro, no tocante ao critério hermenêutico. Asurmendi, em sua obra Isaías 1-39, faz esta pergunta: "Isaías anunciou o Messias?". E ele mesmo responde: "É pouco provável" .
Por incrível que nos pareça, há autores que negam o aspecto messiânico da obra de Isaías. Para eles, tudo que há no profeta e que dizemos ser alusão a Jesus são textos alusivos à casa real de Jerusalém e não deve ser empregado para Jesus. Este uso seria um uso inadequado. Tais autores têm razão ao dizerem isto que alguns textos messiânicos aludem à casa real e não têm razão ao negarem o aspecto messiânico da mensagem do profeta. Restringir os textos, como se fossem apenas documentos narrativos ou descritivos de uma época, é empobrecê-los.
Esta postura têm provocado, óbvio, reação dos exegetas conservadores. Mas, respeitosamente, seus argumentos, em alguns momentos, não me parecem muito felizes. Porque não basta chamar os outros de incrédulos para fazer os argumentos conservadores prevalecerem. E tenho visto muito argumento na seguinte linha: quando o profeta falava, nem ele mesmo sabia do que estava falando. Pensava que estava falando para aquela época, mas falava para tempos futuros. Alguns usam até o desenho de uma onda sonora partindo de um emissor e se dirigindo a dois montes, um pequeno, e atrás, dele, um maior. O pequeno seria a época do profeta e o outro, o posterior, o maior, a nossa época. O texto teria, então, dois sentidos históricos.
Estas interpretações, assim entendo em minha limitação, visam resguardar a inspiração do texto e a aplicabilidade da Bíblia para o nosso tempo, na boa intenção de seus formuladores. Entendo e respeito, mas sem querer ser indelicado, fico pensando se com elas não estamos sendo superficiais na exegese, dando um jeitinho. Assim como rejeito a recusa ao sobrenatural e à inspiração das Escrituras, rejeito a banalidade. Mas emito minha respeitosa discordância porque não entendo profecia e inspiração desta maneira. Esta interpretação, de que o profeta não tinha noção do que estava falando, me faz pensar numa psicografia como os espíritas apregoam. Ora, um dois mais belos aspectos da inspiração é que o escritor bíblico que recebe o sopro do Espírito mantém sua personalidade. Por exemplo: a sensibilidade de Oséias contrasta com o relato duro de Naum. A grandeza literária dos cânticos do Servo Sofredor são diferentes do relato seco das genealogias de Crônicas. Mas se há diferença literária, porque os autores penúltimos, humanos que são, diferem uns dos outros, há uma só inspiração, porque o autor último das Escrituras é o Espírito Santo. Mas eles, os escritores bíblicos, não foram psicógrafos possessos por uma entidade espiritual, e sim pessoas lúcidas que refletiram sobre os eventos de sua época, e que os interpretaram à luz da ação do Espírito de Deus em suas vidas, e que iluminados por ele produziram este fantástico livro, a Bíblia. A teoria dos dois montes e um vale no meio, mostrando a mensagem do profeta para sua época (o monte menor) , com um vale, o espaço histórico, e depois o monte maior, nosso tempo, me parece forçada. Vou seguir por outra linha. Desta maneira, desejo deixar, logo de início os itens que passarei a desenvolver.
1. Estabelecendo um critério hermenêutico
2. Apresentando a tipologia
3. Entendendo a ligação casa real e o Messias
4. O evangelho de Isaías.
Com estes tópicos em mente, vamos ao assunto.
1. ESTABELECENDO UM CRITÉRIO HERMENÊUTICO
O estabelecimento do critério hermenêutico começa com nossa declaração não sobre como vamos interpretar o texto, mas sobre o que dizemos do texto. Boa parte da crítica liberal parte deste pressuposto: estava tratando com um texto comum. Um texto histórico, como qualquer outro. Como "A Carta de Pero Vaz de Caminha", por exemplo. Outros mais, nem tanto. O texto bíblico seria apenas um texto mítico e mitológico, expressando uma cultura antiga muito rica, mas nada mais que isto. Nesta linhas, perdeu-se um elemento indispensável à hermenêutica bíblica: o texto é inspirado, é sagrado, tem origem divina. E mais, ainda: tem lições para nossa vida.
Se pensam que isso é chover no molhado ou apenas tentativa de agradar os conservadores, enganam-se. São dois pontos que sigo, a partir daqui. O primeiro: o texto tem que ser respeitado na abordagem, que não pode negar seu valor e seu caráter autoritativo. Interpretar um texto bíblico é tentar assimilar o máximo do seu sentido, mas ele não fica subordinado ao intérprete. Está acima dele. O intérprete pode assimilá-lo, mas é servo do texto e não seu senhor. O segundo: o texto não precisa ser ajudado. Há interpretações pouco honestas que visam tirar os problemas textuais de vista. E dizer que há problemas textuais não é ser liberal ou herege. É ser honesto. Há problemas textuais na Bíblia. Isso não é negá-la ou ser incrédulo. É admirá-la, respeitá-la, vendo-a como um livro tremendamente complexo. Ela traz os pensamentos de Deus. Os problemas podem ser explicados (e são perfeitamente explicáveis) mas nunca devem ser negados ou varridos para baixo do tapete, alegando-se que quem os enuncia é incrédulo. Assim fazendo, perdemos a oportunidade de aprender. E de poder responder ao mundo incrédulo. Por aquilo que disse no livro Isaías, o Evangelho no Antigo Testamento, aceitando um 2º Isaías, por entender que o Emanuel é, em primeiro plano Ezequias, devo dizer, logo de início: creio, de todo coração, na inspiração bíblica. E não há livro que leia mais e que ame mais do que este.
Qual o critério hermenêutico para entender não apenas Isaías, mas textos históricos, como a primeira parte do livro é, acentuadamente? Devemos usar de atenção e cautela, aqui. Há hoje uma pregação maciça no Antigo Testamento, mas, infelizmente, desconsiderando o ensino cristão de que o Novo Testamento é o parâmetro que interpreta o Antigo Testamento. Este tem sido usado sem exegese, apenas como suporte para práticas as mais esdrúxulas possíveis. Como se pode fazer uma boa exegese de um texto histórico? E como tornar algo do passado em algo válido para nós, sem perdermos o senso de respeito pelo texto bíblico? Porque muitas vezes se desrespeita o texto, fazendo-se com que ele diga o que queremos em vez de mostrarmos o que ele está dizendo. Tentaremos mostrar aqui, se não como se pode fazer uma boa exegese, pelo menos como fazer uma que seja razoável, que não violente a Bíblia.
A primeira atitude a tomar é esta: reconhecer que o texto diz respeito a uma época histórica, que orientou um momento histórico., que está enraizado neste momento histórico. Para muitos, interpretar um texto é trazê-lo para nossa época. É um equívoco este procedimento. Pensar e agir assim nos prejudica. A primeira a coisa a se fazer não é trazer o texto para nosso tempo. É ir ao tempo do texto. A boa interpretação de um texto histórico começa com o intérprete indo ao tempo do texto, vestindo aquela roupa, comendo aquela comida, sentindo aquele cheiro. A pergunta não é "O que o texto me diz?", nem a clássica: "O que você acha disto em sua vida?". Isto é tirar a historicidade do texto e interpretá-lo num vácuo. A primeira pergunta é esta: "O que texto queria dizer para seus destinatários de origem?". Isto nos abre os olhos para um equívoco muito comum: a cristianização do Antigo Testamento feita por muitos intérpretes. Ele não foi escrito para cristãos, mas para hebreus. Precisa ser lido com os olhos da cultura hebréia daquela época. Senão, perderemos muito do seu significado.
Por isso que o capítulo "A Forma e A Estrutura do Livro" (páginas 27-41) tem grande valor para se entender Isaías. Não foi escrito para fazer volume. Parêntesis necessários: o estudo de todo e qualquer livro da Bíblia precisa passar por este caminho: como o livro foi estruturado. Em parte porque "ver" a estrutura do livro nos ajuda a entendê-lo. Em parte porque os autores bíblicos comunicaram suas verdades com o conteúdo e também com a forma literária. Se a Juerp lançar meu livro "A Teologia dos Salmos" verão isso mais acentuadamente. Como os autores comunicaram verdades com a forma literária.
Precisamos ter em mente, no estudo do livro de Isaías, que a primeira parte do livro (capítulos 1 a 39) se destina ao Judá ameaçado pela Assíria. E que a segunda parte ( capítulos 40 a 66) se destina ao Judá dominado por Babilônia, em cativeiro. Perguntará alguém: isto quer dizer que o estudo do Antigo Testamento deve ser uma pesquisa arqueológica livresca? E que ele não tem nada a nos dizer, a nós, cristãos, do século 20?
Não se trata disso. Primeiro, vamos ao tempo do texto. Devemos entender o texto com os olhos da época. Depois, vem outra parte. Em segundo lugar, vem a procura de princípios de valor universal para aplicar hoje. Numa exegese bíblica, encontramos princípios de valor relativo, que são princípios de valor temporário, e princípios de valor universal que transcendem tempos e épocas. O bom exegeta sabe ver os dois tipos, mas entende que o primeiro nada acrescenta à vida das pessoas. É curiosidade de gabinete de intelectual desocupado. Por exemplo: se eu me centrasse na indumentária de Isaías, isto nada traria para meu auditório. Na realidade, isto não é nem mesmo um princípio. Mas serve como ilustração: é possível encontrar informações bíblicas que nada acrescentam.
Qual é o primeiro critério hermenêutico para se entender Isaías? Reconhecer que o profeta escreveu para seus contemporâneos. Reconhecer que o livro diz respeito a uma época histórica (ou duas, aceitando-se o 2º Isaías). Que as bases de compreensão do que o texto está dizendo devem ser encontradas no pano de fundo histórico e cultural da época. Não se pode abstrair o livro de sua época de produção. Isaías 1-39 foi escrito para advertir sobre o perigo que era a Assíria e como Iahweh protegeria seu povo. Isaías 40-66 foi escrito para mostrar que o povo cativo na Babilônia seria trazido de volta. Sem isso, nossa interpretação será mais eisegese (por idéia no texto) do que exegese (tirar idéia do texto). A boa interpretação partirá daqui. Devemos fazer ex-egese ( ex, tirar) e não eis-egese ( eis, por).
2. ENTENDENDO A TIPOLOGIA
Gostaria de falar um pouco sobre tipologia. Parece que quebrei a argumentação e entrei em outro assunto. Em parte sim, mas em parte continuo na mesma linha.
É possível verificar, no livro que produzi, que entendo que o Emanuel é uma referência, primeiro, a Ezequias. E também que pelo menos os três primeiros cânticos do Servo Sofredor se referem a Ciro (o 1º cântico, em 42.1-7), a Israel (segundo cântico, em 49.1-9, principalmente o versículo 3), e um personagem desconhecido ou pelo menos, não muito bem identificado (50.4-11). Para Steinmann, este cântico é um violento ataque do profeta contra o paganismo caldeu . Neste caso, o Servo seria o profeta, mesmo. Também entendo assim.
A questão é esta: como aplicamos o conceito de Emanuel e do Servo Sofredor a Jesus? Que "mágica" é esta?
A profecia pode ser verbal, factual, simbólica (manifesta por atos simbólicos) e tipológica. Na realidade, tipológica é um processo que podemos empregar tanto na factual como nos atos simbólicos. Mas vamos explicar cada um.
Profecia verbal é aquela que vem expressa em uma proposição verbal, em sentenças gramaticais: "Assim diz o Senhor" ou "Veio a mim a Palavra do Senhor". Profecia factual é quando um fato histórico, real, é dado como um sinal ou interpretado como uma profecia. A páscoa no Egito é um fato histórico. Aconteceu no tempo e no espaço. Mas é, também, uma profecia da obra de Cristo. A profecia simbólica é aquela em que um símbolo é interpretado como sendo uma profecia. Jeremias vê um oleiro fazendo um vaso. Assim ele entende o trato de Iahweh com Judá. Isaías teve que andar nu e descalço por dois anos (Is 20.2). Não por pobreza, mas como símbolo do cativeiro. Isto é profecia simbólica.
Tipologia é quando um tipo, um personagem histórico, ou um evento histórico, sendo real, é interpretado como tipo de um outro, a suceder. Todos nós já nos acostumamos a falar de José como um tipo de Jesus. Odiado pelos irmãos, vendido por eles, condenado sendo inocente, colocado como inocente entre dois culpados, sendo que um se perde e outro se salva. Sai para receber todo o poder no Egito, e se torna a única esperança para o mundo. Isto é tipologia.
Tipologia é diferente de alegoria, onde a historicidade se perde. Os eventos passam a ser o que o intérprete quer que sejam. Assim vemos o bom samaritano ser Jesus, o homem assaltado passa a ser o pecador, o sacerdote passa a ser a religião, o levita passa ser o regulamento religioso, etc.. O texto deixou de ser o que era. Passou a dizer o que o pregador queria dizer. A alegoria é um processo bastante problemático.
O método rabínico, empregado pelos autores do Novo Testamento, era tipológico. Por isso que Mateus, que escreveu o evangelho para judeus, o emprega muito. Ele usa Oséias 11.1, que alude a Israel no Egito, como se fosse uma profecia da breve permanência de Jesus no Egito. E diz mesmo que foi para que cumprisse o que fora dito pelo profeta (Mt 2.15). Oséias não predisse a ida e volta de Jesus do Egito. Jesus está absolutamente ausente das páginas de Oséias. Então, Mateus errou? Não, Mateus não errou. Usado pelo Espírito Santo, ele empregou o método de raciocínio de seus contemporâneos e interpretou as Escrituras para eles, dentro de sua categoria mental. A revelação se verificou na história, na cultura, e na forma literária da época, também. A tipologia significa ver paralelos entre os eventos, sem tirar sua historicidade. Muito das Escrituras é tipológico ou paralelo. As doze tribos de Israel encontram seu paralelo nos doze apóstolos. Israel passou 40 anos no deserto e pecou, pedindo pão. Jesus passa 40 dias no deserto, é tentado a pedir pão, mas não o faz. Neste paralelismo descobrimos uma verdade teológica: onde Israel falhou, Jesus não falhará. Ele originará a comunidade definitiva, a Igreja, que substituirá Israel. A Igreja não é um acidente. É o projeto final de Deus, do qual Israel era o rascunho.
Neste sentido, entendamos Isaías. Cada rei de Judá, assentado no trono de Jerusalém, mesmo que fosse um pecador inveterado, mesmo que fosse um idólatra empedernido, era um tipo do Grande Rei que é da tribo de Judá, Jesus de Nazaré. Um dos textos mais importantes para se entender a teologia da aliança, no Antigo Testamento, é 2Samuel 7. Davi quer edificar uma casa a Iahweh (v. 2). Iahweh diz que como Davi quis lhe construir casa, ele dará uma casa a Davi (v. 11). A palavra hebraica é beith, que significa casa, lar, morada, dinastia. Por causa disso, Davi teria uma dinastia que nunca acabaria (v. 13). Isto nos ajuda a entender o que está sendo dito em Isaías com o Emanuel: cada rei era um tipo do Grande Rei. A casa de Davi sempre teria alguém no trono. Todos os reis de Judá foram descendentes de Davi. Por isso o Novo Testamento se abre com a ligação de Jesus com Davi (Mt 1.1) e termina afirmando a ligação entre Jesus e Davi (Ap 22.16). Isto é tipologia. Davi é um tipo de Jesus. Cada rei descendente de Davi era um tipo de Jesus. O Salmo 2 é aplicado, em Atos 4.25-26 a Jesus. Calvino vê como um momento histórico vivido por Davi, com aplicação a Jesus . Weiser (no que me parece mais correto), diz que o Salmo 2 foi composto para a entronização de algum rei de Jerusalém, quando da vacância do trono, num momento em que as nações vizinhas começavam a ver a possibilidade de invadir Israel, pela crise oriunda da morte do rei . Mas o texto teve uma aplicação a Jesus. Isto é tipologia. Em Ezequiel, por exemplo, Davi é, claramente, um tipo do Messias: "E eu, o Senhor, serei o seu Deus, e o meu servo Davi será príncipe no meio delas; eu, o Senhor, o disse." (Ez 34.24)
O Emanuel é um tipo de Jesus. O rebento de Jessé é um tipo de Jesus. O Servo Sofredor é um tipo de Jesus. Mas isto não diminui a pessoa de Cristo, como se ele recebesse as sobras das profecias do Antigo Testamento? Não se trata disso. Isto o engrandece porque mostra que Deus estava decidido a cumprir seu plano de trazer o Messias. Cada rei entronizado, cada evento tipologizado era uma prova disso. Era um pré-anúncio disso. E a revelação de Deus nas Escrituras se torna fantástica! O que está escrito na Bíblia não foi acidente! E o Espírito Santo, autor último das Escrituras, fez um trabalho soberbo, com um texto que dizia algo histórico e aludia a algo profético. Fez surgir um texto mostrando algo que era e, ao mesmo tempo, algo que seria. Só mesmo uma mente muito inteligente poderia agir assim. 3.
ENTENDENDO A CASA REAL E O MESSIAS
Já andamos um pouco nesta direção quando comentamos 2Samuel 7. Fiquemos mais um pouco aqui. A casa real de Jerusalém é fator indispensável para uma visão messiânica no Antigo Testamento. Isso porque, como dissemos, o rei descendente de Davi era um tipo do Messias, fosse quem fosse. Mesmo que o rei fosse idólatra. Estava ocupando o lugar do futuro Grande Rei descendente de Davi. Por isso, quando a nação esteve em crise, Iahweh ainda ordenou a Isaías que fosse confortar Acaz, dando-lhe um sinal (Is 7.10-11). Não era apenas a pele de Acaz que estava em jogo. Nem apenas a existência de Judá. Estava em jogo o futuro da humanidade. Se a casa real davídica fosse aniquilada, adeus Messias! Esta visão tipológica da casa real, em conexão com o Messias, tem um mérito extraordinário: mostra que por toda a história de Israel e de Judá, Deus estava conduzindo seu propósito histórico. Ele nunca perdeu a direção da História em geral nem mesmo o controle dos eventos, em particular. Isto é tão profundo em Isaías, a direção divina na História, que em 45.3-6, lemos o seguinte: "Dar-te-ei os tesouros das trevas, e as riquezas encobertas, para que saibas que eu sou o Senhor, o Deus de Israel, que te chamo pelo teu nome. Por amor de meu servo Jacó, e de Israel, meu escolhido, eu te chamo pelo teu nome; ponho-te o teu sobrenome, ainda que não me conheças. Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cinjo, ainda que tu não me conheças. Para que se saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro". O texto alude ao que Iahweh estava fazendo através de Ciro. Ciro não conhecia Iahweh, mas este o conhecia. Ele chamou a Ciro, escolheu-o, quando ninguém apostava nele. Quando ainda era desconhecido e insignificante. Ele é o Deus que antevê os eventos e os faz suceder. Por isso, só ele é Deus, e ninguém mais. Como é rico em significado o texto de Isaías 46.1: "Bel se encurva. Nebo se abaixa…". As divindades babilônicas se encurvam e se abaixam diante dos atos de Iahweh na História.
As duas partes de Isaías apresentam uma descontinuidade de tempo, mas uma impressionante continuidade de propósito. Em ambas se vê o Deus que age na História. Na primeira parte, a Assíria não pode ir além do que Iahweh permitiu. Na segunda, o tempo de Babilônia, que Iahweh usou para derrubar a Assíria, passou. Mas o tempo da casa de Davi continuou. Judá continuará. O Messias virá. O plano de Deus nunca cessa.
Neste sentido, três passagens do Novo Testamento devem ser entendidas. A primeira é a que traz a pergunta da comunidade cristã a Jesus, em Atos 1.6: "É neste tempo que restauras o reino a Israel?". Comete-se um equívoco quando se diz que eles não tinham entendido o ministério de Jesus. Eles tinham entendido e muito bem, embora dentro de sua ótica: Jesus era o novo Davi. O trono de Jerusalém, a casa real davídica, voltaria a existir. Este era o maior anseio dos judeus contemporâneos do Salvador.
A segunda passagem que devemos considerar é a palavra de Jesus, em João 18.36: "O meu reino não é deste mundo". Mas lembremos que ela não foi proferida para os discípulos e sim para Pilatos. O que desculpa um pouco os discípulos e aumenta a culpa de Pilatos, porque ele sabia do que Jesus estava falando. Mas fica claro que Jesus fez questão de dissociar seu reino da visão de uma casa davídica secular.
A terceira é a palavra de Bartimeu. Ele foi o primeiro a entender que Jesus era o "filho de Davi" (Mc 10.47). Ser "filho de Abraão" qualquer um podia ser, tanto que João Batista disse que Deus poderia tornar pedras em filhos de Abraão (Mt 3.9). Era o que qualquer judeu dizia a seu próprio respeito, que era filho de Abraão, o originador da nação. Mas filho de Davi, só o Messias o era. Entendemos um pouco mais disto quando lemos em Ezequiel 34.24: "E suscitarei sobre elas um só pastor para as apascentar, o meu servo Davi. Ele as apascentará, e lhes servirá de pastor". O Messias é dado como sendo um novo Davi. Aliás, tenho para mim que foi aqui que Jesus veio se abeberar quando se apresentou como o "bom pastor" (Jo 10.10), e não no Salmo 23, por mais que este nos soe encantador. É que Jesus, em João 10, contrasta-se com o mercenário, que pode ser Satanás ou um falso Messias. Na realidade, trata-se da mesma coisa, pois um falso Messias é um agente satânico. Mas, mais que a figura do Salmo 23, ele queria se mostrar como o Pastor, como o Governante, de Ezequiel 34.24.
Com estas informações, entendemos o valor da casa real de Jerusalém nas profecias de Isaías. Elas dão o subsídio necessário para nossa compreensão do messianismo isaiânico. Uma interpretação tipológica nos amplia os horizontes. Por isso toda a preocupação da primeira parte do livro com a preservação do reinado do desastrado Acaz e da intervenção divina na vida de Ezequias. Por isso toda a ênfase da segunda parte no retorno do cativeiro. A casa real deve voltar a operar.
4. O EVANGELHO EM ISAÍAS
Vamos, agora, a algumas conexões entre Isaías e o evangelho. Poderíamos alistar muitas aqui, sem muito esforço. Mas ficaremos com cinco. Por uma razão: muita coisa já foi dita ao longo do caminho, queremos evitar a repetição, e estas cinco nos parecem ser a espinha dorsal do que queremos mostrar em Isaías.
(1) A primeira conexão entre Isaías e a mensagem do evangelho é a presença de Deus na História. Em Êxodo 3.18 lemos: " O Senhor, o Deus dos hebreus, encontrou-nos. Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus". O texto mostra Iahweh entrando na história dos hebreus. O resultado foi libertação. Em Isaías 40, Iahweh entra outra vez na história dos hebreus. É o segundo êxodo. Em Jesus, Deus entra mais uma vez na história dos homens. Lemos em João 1.14: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai". Deus entra na história, mais uma vez. O resultado é, também, libertação. Na primeira entrada de Iahweh na história, Israel surgiu como nação. Na entrada de Iahweh na história, em Jesus, surge a nova nação, a Igreja. E aguardamos a última intervenção dele na História, a que marcará seu regresso para estabelecer seu reino.
(2) Segunda conexão: em Isaías, tanto na primeira quanto na segunda parte, a idéia teológica dominante é a de salvação. Este é o tema predominante do Novo Testamento. Salvação é o seu assunto. E não por méritos humanos nem por alianças políticas. Mas como obra da ação divina. É por isso que pregamos para o pecador perdido dizendo que ele não precisa fazer nada para ser salvo, porque Cristo já fez. Ele precisa apenas aceitar o que foi feito. Acaz recusou a ação divina e preferiu confiar em alianças humanas. Síndroma do pecador: prefere confiar em homens do que em Deus. Mas a Igreja anuncia que a salvação é obra de Deus, na pessoa de Jesus. E que fora dele há apenas desilusão.
(3) Terceira conexão: a visão messiânica de Isaías é profundamente correta. A única esperança de paz, de um mundo novo, sem guerras, está na aceitação humana do governo do Messias. Nem força militar nem conluios e alianças política podem operar a paz mundial. Na realidade, aumentam-na. Xalom, paz, em hebraico, é um dos mais grandiosos dons do Messias. Não significa apenas ausência de conflitos ou cessação de guerras. Significa uma completude, uma integralidade, uma ausência de brechas e de fraturas. Uma vida ideal. Que só é possível no Messias. Isaías, em momento algum, acenou com a possibilidade de paz por intervenção humana. Na segunda parte do livro, quando Ciro aparece como o libertador, ele é apenas um instrumento, porque quem liberta é Iahweh. Isto é o evangelho. Só em Deus, só na pessoa de Jesus é que podemos ter xalom, integralidade. Por isso Jesus disse à Igreja: "Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou…"
(4) Quarta conexão: uma nota profundamente agradável: Consolai, consolai o meu povo, diz Iahweh, em Isaías 40.1. O Espírito Santo, nas palavras de Jesus, é chamado de Consolador. Mas não é um Consolador, nem o Consolador, mas outro Consolador. O grego é allós, da mesma essência, da mesma natureza. Porque Jesus já é o Consolador. Porque ele e o Espírito Santo são um, assim como ele e o Pai são um. Devemos nos recordar do que lemos sobre Simeão, pouco antes dele receber o menino Jesus em seus braços: "Ora, havia em Jerusalém um homem cujo nome era Simeão; e este homem, justo e temente a Deus, esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele"(Lc 2.25). O evangelho de Isaías anuncia que Deus quer seu povo consolado e que esta consolação só é possível por meio de Jesus.
(5) Quinta conexão: o triunfo final do povo de Deus. Em Isaías, na primeira parte, a Assíria foi destroçada. Na segunda parte, a poderosa Babilônia tem os seus dias contados. E foi destroçada. Na primeira parte do livro, o exército assírio foi destroçado de modo sobrenatural. Na segunda parte, o livramento veio de modo natural, através de um decreto de Ciro. Deus age como quer, quando quer, usa quem quer, quando quer. E não deve nada a ninguém por isso. Lemos em 40.13-15: "Quem guiou o Espírito do Senhor, ou, como seu conselheiro o ensinou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse entendimento, e quem lhe mostrou a vereda do juízo? quem lhe ensinou conhecimento, e lhe mostrou o caminho de entendimento? Eis que as nações são consideradas por ele como a gota dum balde, e como o pó miúdo das balanças; eis que ele levanta as ilhas como a uma coisa pequeníssima.". Ninguém lhe ensina nada. Aliás, com isso, deveríamos ser mais abertos e mais submissos a ele, no que ele faz na História. Ele é surpreendente e poucas vezes é repetitivo. É criativo e sempre original. Mas o que interessa aqui é que ele vocacionou seu povo para a vitória. Esta vocação de grandeza a Igreja de Jesus nunca pode perder de vista. Sonhos pequenos, visão limitada, falta de arrojo, comodismo, todas essas coisas são incompatíveis com o Deus de Isaías, que é o nosso Deus.
Por isso, ao Deus de Isaías, que é o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, e Nosso Pai, rendemos glória e damos graças. Ele é o Deus de toda consolação, o Deus que salva seu povo e que o conduz mesmo nos momentos mais tristes e difíceis da História.