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O Evangelho de João

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O Evangelho De João

 

Aula inaugural da EBD da Igreja Batista do Cambuí  – dezembro de 2007

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

 

 

INTRODUÇÃO

            O quarto evangelho é o “não sinótico”, ou seja, o único que não tem a ótica comum a Mateus, Marcos e Lucas, que tentam fazer uma cronologia, enquanto ele, João, faz teologia. É o evangelho dos discursos. É de fácil leitura, bom para evangelizar, e faz uma defesa muito forte da divindade de Jesus. É um dos documentos mais profundos sobre a pessoa de Jesus. Vale a pena refletir sobre ele.

 

1.       QUEM É ESTE JOÃO?

Ele é testemunha ocular do que narra: 1.14. Em 12.3, parece que sentiu o perfume da casa onde o evento sucedeu. É preciso nos números: 6 talhas de pedras, 4 soldados ao pé da cruz, o homem doente por 38 anos, 153 peixes apanhados na rede, etc. Fica bem claro que é um judeu. Conhece a história, os costumes, as idéias e as esperanças dos judeus. Isto fica claro em 1.17 e 4.5. Sabe dos preceitos de valor judaicos. No sábado não se podia trabalhar, mas podia se circuncidar um menino. Ele sabe que a circuncisão tinha precedência sobre a proibição de trabalho no sábado (7.22). Conhece os sentimentos dos judeus quanto ao sábado: 5.10 e 19.31. Conhece bem o Antigo Testamento e a língua hebraica. Sabe e interpreta corretamente os significados dos nomes hebraicos: 1.38, 1.41, 5.2, 9.7, 19.13 e 20.16. Ele cita o AT hebraico (em vez de citar a Septuaginta) e dá sua própria tradução do hebraico para o grego.

Conhece a geografia da Palestina e a topografia de Jerusalém. Havia duas cidades chamadas Betânia. Ele distingue entre elas (1.28), sabe quem é de que lugar (1.44), etc.

 

2.       O AUTOR É UM APÓSTOLO

Somente alguém muito de perto poderia ter as informações que ele tem. Só poderia citar 2.17 e 4.27, por exemplo, quem fosse um dos apóstolos. Jesus tinha três mais chegados: Pedro, Tiago e João (Mt 17.1).  O primeiro fica excluído pelas referências do autor a Pedro e porque o evangelho de Marcos é reconhecido como o de Pedro (que deu as informações a Marcos, com quem tinha afinidade).  Tiago foi morto mais ou menos no ano 44 (At 12.2). A maior possibilidade é para João. Irineu, Clemente de Alexandria e Tertuliano, no segundo século, já diziam que João, o discípulo amado, foi o autor do quarto evangelho. Aliás, Clemente disse que João escreveu para suplementar os sinóticos.

Hoje se presume que João escreveu antes dos sinóticos. Talvez já no ano 50. Em 5.2, ele não diz que “havia em Jerusalém”, mas “há em Jerusalém”. Jerusalém não apenas existia (foi destruída no ano 70), mas o autor ainda estava lá. Isto mostra que é um evangelho bem próximo aos eventos que narra.

 

3.       A PERSONALIDADE DE JOÃO

Era meio explosivo, tanto que Jesus o chamou de “filho do trovão”, junto com seu irmão: Marcos 3.17. Ele fala de si, ao mencionar o discípulo especial de Jesus (Jo 13.23 e 19.26). Era querido, talvez por ser o mais novo. Sendo o autor do Apocalipse (no ano 95) foi o último dos apóstolos a morrer. O evangelho o abrandou, e ele se tornou o apóstolo do amor (1Jo).

 

4.       SEU OBJETIVO

Alguns presumem que ele escreveu para apresentar uma versão de Jesus aos pensadores gregos. Mas ele define bem o propósito em 20.30-31. Em 1.1-18, ele dá um resumo do evangelho, por isso o texto é chamado de “Prólogo do evangelho”. Ele está fazendo uma história da criação, como a do Antigo Testamento. Veja as duas primeiras palavras em Gênesis 1.1 e João 1.1. A idéia é “no princípio, Deus”. Ele já começa declarando a divindade de Jesus: 1.1-3. Esta nova criação é a igreja. Mas o tema do livro está em 1.14.

 

5.       A ESTRUTURA DO QUARTO EVANGELHO

O quarto evangelho pode ser dividido da seguinte maneira:

Prólogo – 1.1-18

(1)    O Livro dos Sinais – 1.19  a 11.57

(2)    O Grande Sinal – 12.1 a 19.42

Epílogo – 20.30-31

Apêndice – 21.1-23 (O Dia que não Termina)

Segundo Epílogo – 21.24-25

 

6.       O LIVRO DOS SINAIS

Há um trecho chamado de “Primeira Semana” (1.19 a 11.57). Eis o seu esquema:

1º dia – 1.19-28

2º dia – 1.29-34

3º dia – 1.35-42

4º dia – 1.43-51

6º dia – 2.1-11 – Início dos sinais de Jesus. João nunca usa a palavra “milagre”. Ele usa “sinal”, no grego  sêmeion, que dá a idéia de uma indicação.  São “pistas” que  ele vai deixando para provar sua tese de 1.1-18.

 

Os sinais são sete, assim distribuídos:

1º sinal –  2.1-12  – o casamento em Caná. Veja, especialmente, o v. 11. O vinho novo é melhor (2.10). O vinho novo é o cristianismo e o vinho velho é o judaísmo. Este é representado pelas “talhas para purificações dos judeus” (2.6). O vinho era símbolo da alegria e sinal da bênção do messias. Não há vinho nas talhas do judaísmo. É Jesus quem traz o vinho da alegria.  Importante: mais uma vez, a comparação com Gênesis. A humanidade surge no sexto dia (Gn 1.26-27). É no sexto dia de João, que a nova humanidade, a humanidade em Cristo, começa a aparecer. Assim como o Pai só descansou no sétimo dia, quando tinha terminado tudo, Jesus só descansará que terminar tudo: 19.30.

2º sinal – 4.46-54 – a cura do filho de um oficial do rei. Veja, especialmente, o v. 54. É no mesmo lugar onde começaram os sinais  (v. 46). É a cura de um gentio. Os sinais são para quem os leia venha a crer e ter vida. Aqui, um menino que estava para morrer, passa a ter vida (v. 49). Era um gentio. Mas estes também têm direito à vida.

3º sinal – 5.1-9 – a cura do paralítico.  Começa o distanciamento entre Jesus e o judaísmo. A festa é em Jerusalém (v. 1), mas ele não vai o templo, vai para Betesda. Neste tanque jaziam enfermos, cegos, mancos e aleijados (v. 2). Estas pessoas não podiam entrar no templo (2Sm 5.6-8). É com eles que Jesus vai estar. O templo, símbolo do judaísmo, não o entusiasmava. Ele via a si mesmo como o templo (lugar de encontro com Deus): 2.19-21. João mostra que é em Jesus que encontramos Deus: 14.8-11.

4º sinal – 6.1-15 – a partilha dos pães. Veja, particularmente, o v. 14. A páscoa estava próxima (v. 4), mas ele não vai a Jerusalém e sim a Galiléia, a terra dos gentios, desprezada pelos judeus ( Jo 7.52, Mt 26.69 e Is 9.1-2). O resultado é ambíguo: a multidão quer fazê-lo rei e Jesus é obrigado a se retirar. Seu reino era outro: 18.36.

5º sinal – 6.16-21 – Jesus caminha sobre as águas. Os discípulos deixam Jesus sozinho (6.15). Parecem desiludidos, mas Mateus diz que Jesus os obrigou a partir sem ele, para orar (Mt 14.22-23). Ele precisava fortalecer-se, depois da experiência de quase ser tornado rei à força. E eles precisavam conhecer o poder de Cristo sobre a natureza, para entenderem o significado da multiplicação dos pães (Mc 6.51-52). Então, ele faz o discurso sobre o verdadeiro pão, no que se chama de “o grande discurso do pão” (6.22-59). Ele é o pão (vv. 35, 41, 48, 50-53, 58). Foi um choque, um desalento para muita gente: 6.60. Uma questão paralela a Gênesis: em Gênesis 1, o Espírito paira sobre as águas. Aqui, em João, é Jesus quem paira sobre as águas.

6º sinal – 9.1-41 – a cura do cego de nascença. João faz uma analogia do cego com os discípulos. Eles tinham visto a luz do mundo (1.7-9), mas ainda não viam bem. Em 8.12 há uma palavra de Jesus que é um prelúdio a este milagre. Isto porque até mesmo os que criam nele estavam com dúvidas e discutindo com ele: 8.31-33 (observe que a palavra dele é com os que “criam nele”). O final da história  é interessante. O ex-cego é expulso do judaísmo (9.34-35) e só depois disto é que se rende a Jesus. Note-se que Jesus compara a cegueira com a incredulidade, no fim do episódio: 9.39-40. O pior cedo é o da alma, o que não quer ver.

7º sinal – 11.1-44 – a ressurreição de Lázaro. É mais um sinal (11.47) e leva as pessoas a crerem (11.45). Esta é a finalidade dos sinais (20.30-31). É o mais elevado dos sinais. Lázaro está morto, definitivamente morto. São quatro dias de morte (11.39). Para o judeu, a alma do morto levava três dias para caminhar até o mundo dos mortos, o xeol. No quarto dia já estava lá. Jesus o tira do mundo dos mortos. João faz um prelúdio a este sinal nas palavras de Jesus em 10.10. Compare 11.32 com 1.4.

 

7.       A SEGUNDA SEMANA

Vimos a primeira semana. Há uma segunda semana, na estrutura de João (12.1 – “seis dias depois”). É a hora da morte. É o grande sinal.  Começa a páscoa, que trará a morte de Jesus.  Ele é o grão de trigo que precisa morrer, como se lê em 12.24. Mas esta morte é sua glorificação: 12.23. Por causa desta morte e glorificação, ele será o ponto de atração para o mundo inteiro, como lemos em 12.32.

No relato de João, esta páscoa não acontece. Jesus morre na véspera, no dia da preparação, como lemos em 19.31. No primeiro dia da terceira semana, Jesus ressuscita (20.1). Esta é a semana que nunca termina, que dura “até que eu venha” (21.23), que são as últimas palavras de Jesus. Em 13.1 há um jogo de palavras. “Pascoa” significa “passar”, em hebraico. Na páscoa, no “passar”, é hora de ele “passar deste mundo para o Pai”. É sua páscoa, também.

 

8.       O GRANDE SINAL

É o trecho de 13.1 a 20.29. Divide-se em três partes:

(1)    O lava-pés (13.1-30)

(2)    Discurso de despedida (13.31 a 17.26)

(3)    Paixão, morte e ressurreição de Jesus (18.1 a 20.29).

A finalidade do lava-pés é orientar a comunidade que dele brotará a viver em serviço mútuo.  Ele fez o serviço de um escravo. A lição é bem clara, como se lê em 13.12-17. Como algumas igrejas, em que há luta por poder e briga por cargos, deveriam refletir sobre isto! Este episódio termina com uma declaração de rara poesia: “e era noite” (13.30). Era noite para ele, como vemos em 13.21. Para Judas, que deixou Satanás entrar em seu coração. E para a comunidade apostólica, que ficaria sem Jesus.

O discurso de despedida é comovente. Mesmo ficando sem ele, os discípulos não devem temer: 14.27. O Espírito Santo virá para ficar com eles. A igreja não é órfã. Jesus voltou para ela, na pessoa do Espírito Santo (14.18). Toda Trindade passa a habitar no cristão, como lemos em  14.16 e 23.

Na sua prisão, por três vezes, ele usa “sou eu” ou “eu sou”, dependendo da forma de se traduzir:  18.5, 6 e 8. No relato da paixão de Jesus, mais uma vez brilha a genialidade de João. Ele termina o episódio com 19.41-42. Jesus é posto num sepulcro. Acabou-se tudo! Mas vem o domingo, o dia do cristão, o dia em que Cristo sai da sepultura, vence a morte (20.1), e passa a ter autoridade para dizer o que disse em 14.19. Porque ele vive, nós viveremos. E porque ele foi glorificado, nós o seremos, também: 1João 3.2.

 

9.       O ACRÉSCIMO

O capítulo 21 é claramente um acréscimo de João. Ele terminou a história de Jesus em 20.29. Este capítulo é uma bem-aventurança para todos os que creriam depois. Para nós, inclusive. O texto de 21.30-31 é o epílogo e o capítulo 21, um acréscimo. Por que João fez isto? O capítulo  é de uma beleza e espiritualidade comoventes. Pedro deserta. “Vou pescar” (21.3) é “vou pescar continuamente”, no grego. Pedro estava desistindo. Ia ser pescador, novamente. Compare isto com Marcos 1.17. Toda a comunidade apostólica segue a Pedro e toda a comunidade fracassa. Como diz um cântico nosso, “sem Jesus não dá”.

Na desistência, Jesus se chega a eles (v. 4). A história toma novo rumo. Sob a direção de Jesus, a pesca é proveitosa. Pedro se preocupa com João (21.21), o mais moço deles, e é repreendido por Jesus. De maneira fantástica, João coloca na boca de Jesus a sua última palavra no seu evangelho: “Segue-me tu”  (v. 22). Assim, o evangelista, após terminar sua obra, com uma bem-aventurança para os que creriam sem ver (20.29), recomeça-a e a conclui, por fim, com um desafio de Jesus, “segue-me tu”.

 

CONCLUSÃO – UMA CURIOSIDADE QUE É RELEVANTE

Em hebraico, o nome de Deus é Ihwh, impronunciável, que costumamos mencionar como sendo Iahweh. Uma tradução literal seria EU SOU. Veja Êxodo 3.13-14. João gosta de ressaltar como Jesus se referia a si mesmo e, nestas referências, como usava o “Eu sou”. Observe isto em 6.41, 6.51,  8.12, e, principalmente, 8.58. Veja que após esta declaração de Jesus, os judeus tentam apedrejá-lo (pena de morte para a heresia). Como Jesus falou em aramaico, deve ter ficado bem claro o nome de Deus para os judeus. Estes nem sequer o pronunciavam, mas Jesus o aplica a si. É por isso que logo depois deste episódio, vem o do cego de nascença, que termina com as palavras do Mestre em 9.40-41.

João mostra no início que Jesus é o próprio Deus, encarnado (1.1-4 e 14). Desenvolve este tema por todo o evangelho. E, no seu último livro (ele escreveu também 1a, 2ª , 3ª   João e o Apocalipse) vai mostrar Jesus dizendo isto a seu próprio respeito: Apocalipse 22.13. Por isto que podemos dizer que os escritos de João têm como sustentáculo sua declaração do evangelho, em 1.14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai.

 

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