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Um estudo sobre a igreja

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Um estudo sobre a igreja

Preparado pelo Pr. Isaltino G. C. Filho

INTRODUÇÃO

O que é, exatamente, uma igreja?

As respostas são as mais variadas possíveis, dependendo da visão de cada um. Por isto precisamos nos cingir o mais possível ao ensino das Escrituras. Nossos conceitos teológicos são determinados, em grande parte, por nossa visão denominacional e conceitos pessoais. Muitas vezes pomos na Bíblia o que queremos, em vez de tirar dela o que devemos. No presente estudo a preocupação não é mostrar o modelo batista ou denominacional, mas os padrões bíblicos que nos ajudarão a entender o que é a igreja.

1. DEFININDO IGREJA

No presente trabalho uso o termo igreja e nunca Igreja. Faço uma diferença aqui. O Novo Testamento não conhece algo como Igreja Católica, Igreja Presbiteriana ou Igreja Batista. Não existe a Igreja (no sentido denominacional). Existem igrejas, no sentido de comunidades locais.

O termo para igreja, no Novo Testamento, é eclesia (eklesia). Ocorre 119 vezes no NT. Quando nossas bíblias trazem a palavra igreja é esta a palavra que estão traduzindo. Tem pelo menos quatro sentidos:

1º) em três vezes, o sentido é clássico, sem implicação religiosa. As três vezes estão em Atos 19. Nos vv. 32 e 41 indica uma massa de pessoas. No v. 39, indica uma assembléia reunida para fins judiciários.

2º) duas vezes, o termo é essencialmente judaico, traduzindo o hebraico qahal . A idéia hebraica é de um grupo de pessoas chamadas para alguma finalidade.

3º) o uso majoritário é para um grupo de pessoas reunidas num local. Das 119 vezes, o termo tem este sentido em 85. O conteúdo da palavra aqui é claramente de igreja local, como em 1Coríntios 1.2.

4º) em quase vinte vezes, o sentido é difuso, tendo a idéia universal, como “a igreja de Deus”, parecendo indicar um sentido mais amplo que o de local. Mas um estudo cauteloso não invalida o sentido de local. Em Efésios e Colossenses, principalmente, o sentido parece ser universal, mas nunca de uma denominação. Refere-se à totalidade do povo de Deus, como em Efésios 2.10.

Resumindo: o NT fala de igreja como um grupo de pessoas reunidas em uma determinada cidade e, em sentido mais amplo, como um povo. Não hierarquiza igrejas nem fala delas como uma instituição. É sempre gente, povo, nunca tijolos e bancos. Nem mesmo uma instituição cultural ou denominacional.

2. OS TERMOS BÍBLICOS PARA IGREJA

Já se disse que igreja é eclesia, termo grego que corresponde ao hebraico qahal. O que significavam estes termos?

Qahal tem o sentido de congregação ou ajuntamento. No Salmo 26.5, onde se lê “odeio o ajuntamento de malfeitores”, temos “odeio o qahal”. O termo é tão amplo que alude a pessoas más e não a uma igreja. É simplesmente gente reunida.

Em outras ocasiões, qahal alude a um grupo reunido para propósitos específicos, como em 2Crônicas 20.5, onde é traduzido por “congregação”.

Em 25 vezes o termo se refere a um ajuntamento local para culto, como em Salmo 22.22 e 40.9.

O uso majoritário é o ajuntamento solene do povo de Israel perante o Senhor. Em 77 vezes fala de Israel ajuntado como nação. E em 7 como todo o Israel.

Isto posto, pode-se dizer que qahal significa:

1. a assembléia de Israel como propriedade de Deus, um povo do Senhor.

2. o povo, nunca dissociado de seu contexto de tempo e espaço. Ou seja, não é usado abstratamente, como se faz hoje: “a Igreja”.

3. no período intertestamentário, o ajuntamento local para fins de culto.

Vejamos, então, eclesia, no sentido do grego clássico:

1. é usado para designar uma assembléia ou grupo

2. pessoas com certas qualificações

3. um grupo com certa forma de organização

4. um grupo com processos democráticos (na Grécia, usava-se para o povo em assembléia para decisões, como hoje chamaríamos, de eleições ou de plebiscitos).

5. o termo designava uma assembléia de pessoas autônomas, independentes de outras.

É razoável pensar que o NT adotou o termo exatamente por causa do seu sentido. Ou, pelo menos, influenciado pelo seu sentido.

4. DEFININDO IGREJA

Igreja, portanto, não é uma denominação ou uma rede de templos. A definição de Conner é muito boa:

Uma igreja é fundamentalmente uma congregação de pessoas que foram unidas a Deus por uma experiência da graça salvadora de Cristo e foram ligadas em união pelo Espírito Santo, adorando a Deus e crescendo em comunhão uns com os outros.

Nesta definição, Conner assimilou muito bem os sentidos diversos de qahal e de eclesia. Pessoalmente, defino igreja como

um grupo de pessoas que encontrou a Deus na pessoa de Cristo, foi salva por ele e com ele se comprometeu a viver dentro dos seus princípios.

Isto deve abrir nossos olhos para algo: o que há de mais importante na igreja, depois de Deus, óbvio, são as pessoas. Precisamos investir em pessoas. Igreja é gente e não tijolo. Há obreiros muito bons em construção. Mas negligentes em pessoas, em treiná-las, pregar para elas, aconselhá-las e desenvolvê-las. O maior investimento na igreja é em gente e não em patrimônio material.

5. QUANDO SURGIU A IGREJA?

Várias teorias são levantadas quanto ao surgimento da igreja. Eis algumas:

1. no Éden (segundo Calvino).

2. quando Jesus chamou os doze (particularmente, vejo aqui o embrião da igreja). Respeitosamente peço sua leitura de "O Embrião da Igreja", capítulo de meu livro Como Sua Igreja Pode Transformar o Mundo.

3. quando Jesus ordenou aos discípulos que batizassem

4. quando da grande comissão

4. no dia de pentecostes; os ministérios da igreja e do Espírito Santo seriam coincidentes, neste caso.

5. Atos 2, quando vemos as atividades típicas de uma igreja.

Particularmente, vejo a igreja como existente desde a eternidade (Ef 1.4), em forma ideal, no coração de Deus. E, funcionalmente, a partir do dia de pentecostes. A igreja vem desde a eternidade e, em termos funcionais, surge em Atos 2, quando os discípulos, sem a presença física de Jesus, têm a responsabilidade de levar seus ensinos.

A relevância disto é mostrar que igreja não é uma aventura nem uma especulação. É um projeto que surge no coração de Deus desde a eternidade e se concretiza no mundo com a missão de Jesus Cristo. Igreja é algo sério, relevantíssimo, e deve ser encarada e trabalhada com a maior seriedade possível. Cuidar de uma igreja não é ter um emprego, mas estar encaixado dentro do plano de Deus, com a mais alta responsabilidade. O pastor é quem cuida da execução do planos de Deus neste mundo.

A igreja é o povo de Deus, herdeira e sucessora da eleição de Israel. Ela substitui Israel no propósito de Deus. Conforme Mateus 21.43, o reino foi tirado de Israel e dado à igreja. Em 1Pedro 1.1 ela é chamada de “peregrinos da dispersão”, título anteriormente concedido a Israel. Em 1Pedro 2.9-10, quatro títulos que eram de Israel lhe são atribuídos: geração eleita, sacerdócio real, nação santa e povo adquirido. Compare com Êxodo 19.6 e Isaías 43.20-21. Ela foi chamada das “trevas para a sua maravilhosa luz”, como Israel fora chamado do Egito (Os 11.1). Israel era o projeto e a igreja, a consecução. Israel foi o rascunho e a igreja, o modelo definitivo. Deus não tem dois povos. Só um. O povo de Deus é a igreja.

6. A BASE TEOLÓGICA DA IGREJA

A base teológica da igreja está em Mateus 16.13-18. É o texto da confissão de Pedro. A questão capital é esta: quem é Jesus Cristo? Nenhum indivíduo pode ser cristão ou ser da igreja sem responder a esta pergunta, crucial. Só se pode ser igreja pela fé em Jesus Cristo.

O diálogo faz de Pedro o primeiro cristão. Jesus reconhece que foi o Espírito Santo quem revelou aquela verdade a Pedro. Quem é a pedra? Várias teorias são aventadas e registro aqui as mais comuns:

1. segundo Agostinho, Jesus apontou em duas direções. “Tu és Pedro”, apontou para Pedro. “Sobre esta pedra”, apontou para si. Fica um pouco difícil ver isto no texto. Necessitaríamos de uma testemunha ocular que registrasse esta atitude. Não há.

2. a pedra é a confissão de Pedro. Cada cristão confesso seria uma pedra que faria o alicerce da igreja

3. a fé de Pedro. A fé em Jesus como o Cristo, Filho de Deus, é a pedra que sustém a igreja até hoje.

4. Pedro mesmo. Pessoalmente fico com esta teoria. Pedro como pessoa, como crente. Comparemos Mateus 16.19 com 18.18. O que foi dado a Pedro foi dado à igreja como um todo. Isto não significa dizer que Pedro foi papa. Tinha sogra. Não tinha autoridade sobre os outros. Leia-se Gálatas 2.11. O primeiro papa, historicamente, foi Leão I, em 445, por um decreto de Valentiniano III. Constantinopla teve o mesmo direito. A Igreja (com I mesmo) se dividiu. Pedro é representativo da igreja por ser o primeiro a confessar Jesus como o Cristo de Deus. Não temos nenhum indício de uma sucessão apostólica. Matias substituiu Judas, mas na medida em que os apóstolos foram morrendo não houve sucessores. Pedro não deixou sucessores e é discutido se chegou a ser o bispo de Roma.

7. A MISSÃO DA IGREJA

Não tenho receio de definir o que creio em uma só palavra: a missão da igreja é a adoração. Não é a evangelização, mas a adoração. Ela existe em função de Deus e não do mundo. No céu não haverá perdidos para evangelizar, mas haverá igreja porque haverá Deus. Ela existe por causa de Deus e não dos perdidos, repito. Isto define bem a missão da igreja em termos verticais. Quanto ao mais, me dispenso de me alongar neste aspecto.

Em termos horizontais, a missão da igreja é gente. Ela serve a si e ao mundo. Para isto, a igreja é uma comunidade que deve crescer. Leia-se o texto de Efésios 4.11-16. Cada um tem o que fazer, beneficiando os outros. A igreja é uma comunidade onde as pessoas interagem umas com as outras. Nosso povo deve ser ensinado a ver igreja da seguinte maneira: não é “o que a igreja pode fazer por mim?”, mas “o que posso fazer pela igreja?”. Serviço aos outros é a motivação horizontal da igreja.

8. FIGURAS DO NOVO TESTAMENTO PARA A IGREJA

O NT usa algumas figuras bem elucidativas sobre igreja, às quais devemos atentar. Já vimos os termos qahal e eclesia. Os outros termos nos ajudarão a entender mais o que é igreja.

1. Povo de Deus – É o conceito dominante de igreja no NT. No Antigo Testamento, a idéia de um povo é muito forte. Israel girava ao redor de três verdades: um Deus, um povo e uma terra. A igreja gira ao redor de três verdades: um Salvador, um povo e uma pátria celestial (Hb 11.16). Das três verdades permanece o conceito de povo como imutável. Israel era povo porque Iahweh era seu pai (Êx 4.22-23). Um povo, nos tempos do AT, remontava a um ancestral comum. A igreja, como Israel, remonta a um ancestral comum.

No NT, o termo mais comum para Deus usado por Jesus é “Pai”. É o termo da oração modelo. A igreja é o povo que tem a Deus como Pai, por causa de Jesus Cristo.

2. Corpo de Cristo – 1Coríntios 12.12-31 e Efésios 4.1-16 mostram a igreja como corpo. A figura necessita ser explicitada. Não é mística, mas funcional: mostra interdependência e complementaridade. Num corpo, os membros são dependentes uns dos outros e se complementam. A igreja é um grupo de pessoas que devem viver em solidariedade e não isoladas umas das outras. Veja-se principalmente 1Coríntios 12.27.

3. Templo e sacerdócio – O pastor não é um sacerdote, no sentido de ter uma autoridade espiritual diferente da dos demais. Todos os crentes o são. Todos têm a função do sacerdote: podem acessar a Deus diretamente, interceder por si e pelos outros. Quanto à palavra templo, o NT nunca a usa para uma construção. Como o terno santuário. Alguns chamam o salão de cultos de “santuário”, o que é resquício do AT. No NT, “santuário” é gente. Salão de cultos é o lugar onde o verdadeiro santuário de Deus, as pessoas, se reúne. Veja-se 1Coríntios 3.16, 6.20. Nós é que somos a casa de Deus (Hb 3.6). No NT, Deus não habita em construções (At 17.24), mas em pessoas.

4. Servo – O termo é riquíssimo, no AT. Designava alguém escolhido por Deus para uma missão, o ebhed Yahweh. Vejam-se, principalmente, os cânticos do Servo, na segunda parte de Isaías. Nestes textos, o conceito, que era de Israel (49.3), vai se pessoalizando e se aplica a uma pessoa, em 52-13 a 53.12. É, claramente, um indivíduo. Jesus se viu nos cânticos do Servo (veja Lucas 4.16-21). O primeiro servo, Israel, falhou. Pecou no deserto. Não confiou e pediu pão. Jesus foi ao deserto e não pediu pão, como Israel o fez. A igreja é a comunidade do segundo Servo. Ela está no mundo para fazer a vontade de Deus.

5. Noiva – A figura do casamento entre Israel e Iahweh é bem clara em Oséias. Nos escritos paulinos e no Apocalipse, a idéia é aplicada à igreja. Ela é a noiva, aquela que deve esperar o noivo, que lhe deve ser fiel, viver em expectativa de sua chegada e confiante na sua palavra.

Tudo isto nos permite ter uma visão teológica mais ampla do que seja igreja. E, a partir daqui, construir nossa concepção eclesiástica de forma mais bíblica e mais abalizada. Note que ainda não entrei em detalhes sobre administração eclesiástica. Por quê? Por uma razão muito simples: nossos maiores problemas estão em um conceito distorcido e fragmentado de igreja. Os desvios partem daqui. Tendo esta base será mais fácil acertar os demais detalhes. A questão mais importante para nós é visualizar igreja por uma perspectiva mais bíblica e menos pragmática, utilitária e até mesmo denominacional. Não que a denominação deva ser descartada. E sim que a visão denominacional deve ser de acordo com a Bíblia. Nunca deve a Bíblia ser analisada pela ótica denominacional e encaixar-se dentro de nossa perspectiva.

CONCLUSÃO

O presente trabalho apresenta algumas lacunas. Duas saltam aos olhos. A primeira é: como funcionalizar a parte visível da igreja? Como administrar a igreja, como instituição, aspecto que não pode ser desprezado? Isto não é matéria para palestra após o almoço (não é uma queixa do meu horário – apenas que é matéria para um semestre de estudos). E tambén não estava no que me foi pedido para apresentar. Indico o livro, excelente, de Ebenézer Soares Ferreira, Manual da Igreja e do Obreiro, editado pela JUERP. É o melhor e mais prático guia de administração eclesiástica em português.

A segunda grande lacuna é: como a igreja local se encaixa dentro da denominação? Presumo que este assunto já foi tratado em outras palestras e para evitar repetições, anexo o texto de Ed Renê Kivitz, meu ex-aluno e minha ex-ovelha, autor de dois excelentes livros sobre igreja. É Reflexões Acerca da Denominação Batista. Vale a pena ler.

Assim deixo minha colaboração com os irmãos. Caso tenha podido ser útil, graças a Deus. Se não pude, peço-lhe desculpas e lamento por isto. Mas é o que tinha a dizer. E tenho dito.

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