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O uso do Antigo Testamento na pregação contemporãnea – Parte Dois ? Buscando Acertar

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O uso do Antigo Testamento na pregação contemporãnea

Parte Dois – Buscando Acertar

 

Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

 

INTRODUÇÃO

Na palestra anterior mencionei o volume de pregações no Antigo Testamento, ressaltando alguns equívocos que vêm sendo cometidos, como o da mera transposição do texto, o apelo à alegorização e a desconsideração de  um princípio teológico elementar, o da revelação progressiva.

 

Na presente palestra pretendo mostrar algumas maneiras de trabalhar o texto bíblico do Antigo Testamento em nossas mensagens. Um dos problemas que podemos ter em pregar mensagens nesta parte da Bíblia é que, mesmo com a exegese correta, a mensagem pode ser excelente para uma sinagoga, não para uma igreja. A questão é: como pregar o Antigo Testamento, como um pregador cristão, falando de Cristo para um auditório cristão? Chamei a atenção para o fato de que pregamos a Cristo e devemos ver que o Antigo Testamento dá testemunho de Cristo. Vamos por aqui, então. Quais os passos corretos?

 

1. PREGUE A CRISTO, MAS NÃO PONHA CRISTO EM CADA PASSAGEM

Estas foram as palavras finais da palestra anterior: “Somos cristãos. Pregamos a Cristo. Cabem aqui as palavras de Paulo, em 1Coríntios 1.23: “nós, porém, pregamos a Cristo crucificado”. Não pregamos a Moisés nem a Arão. Pregamos a Cristo. Mesmo no Antigo Testamento, preguemos a Cristo. Ele é o nome sobre todo o nome. Sobre o nome de qualquer personagem do Antigo Testamento”.

 

Cabe uma ressalva. Isto não nos autoriza a cristianizarmos o Antigo Testamento. Não podemos forçar situações e colocar Jesus em cada brecha que virmos. Há pregações extremamente alegóricas porque cada aspecto é torcido para se ver Jesus. Ouvi um sermão em que as roupas que Deus preparou para o casal do Éden, de peles de animais, simbolizavam Cristo, pois para se ter peles de animais precisa se ter sangue derramado. Deus teria matado aqueles animais num símbolo do que aconteceria com Jesus.  Tirando o mau gosto de se ver o Pai esfolando Jesus no Calvário, a linha de interpretação poderia ter sido outra. Não me parece que ali Deus estivesse falando da vinda do Filho para Adão e Eva. Nem que Moisés, autor de Gênesis, estivesse falando de Jesus. Mais que alegorizar, corremos o risco de fantasiar o Antigo Testamento. Não ponha sua imaginação nem o seu querer nas passagens bíblicas.

 

Mostrar a pessoa de Cristo no Antigo Testamento é algo que deve ser feito com cuidado. Não se pode cristianizar o Antigo Testamento. Ele não foi escrito para nós, mas para os hebreus. Ele precisa ser entendido como foi escrito, para seus destinatários primeiros, e depois aplicados a nós, destinatários segundos. Apresentei uma aula para a turma de Exegese de Antigo Testamento, na Faculdade de Campinas com o assunto “Exegese de livro a partir da estrutura literária – o modelo dos Salmos”. Analisei um sermão expositivo no Salmo 1º. Mostrei como sua estrutura foi percebida, como foi ele decomposto na minha análise, e a mensagem composta. Na conclusão do sermão encaminhei o assunto para Cristo, embora o salmo não fale de Jesus. Fiz esta observação na apostila preparada para aquela aula:

 

 A conclusão, toda ela, foi montada no entendimento da estrutura literária do Salmo, fazendo contrastes. Eles permeiam toda a Bíblia, como as bênçãos e maldições de Ebal e Gerizim, as figuras empregadas por João, e chegando à idéia de caminho, em João, mostrando Cristo como o caminho. Aqui fica uma consideração importante: no corpo do salmo, dentro do seu texto, não há lugar para Cristo. O salmo considera o homem à luz da sua posição diante da torah. Peguei a idéia de caminho e mostrei Cristo como caminho porque não sou rabino. Sou cristão. O texto precisa ter uma aplicação cristã. Isso não quer dizer que deve ser cristianizado, mas que deve receber uma visão cristã. Isto é importante: o texto não pode receber uma interpretação cristã, mas deve receber uma visão cristã. Deve ser interpretado à luz da cultura hebraica da época, que é a única possível (foi escrito para judeus), mas quando fazemos sua aplicação, devemos fazê-la como cristãos. Nunca cristianize o Antigo Testamento. Não procure ver Cristo em toda e qualquer passagem. Estude o Antigo Testamento e, depois de ter produzido seu material exegético, interprete-o como cristão.[1]

                Aqui se deve corrigir um equívoco muito comum em certos círculos de estudos bíblicos. Neles, lê-se a passagem e se pergunta: “O que isto diz para você?”, e se parte para afirmações sobre o que se leu. Não é este o caminho. A pergunta é “O que o texto queria dizer para seus destinatários?”. Ele pertence a outro povo, a outra cultura, foi expresso em outra língua com estrutura e cultura diferentes da nossa. Por trás dele há séculos de distância e de cultura. É possível uma pessoa entender bem o Salmo 23 sem conhecer nada disto. Mas um estudo acurado exigirá isto. Interpretar um texto do Antigo Testamento não é trazer o texto para nosso tempo. É ir ao tempo do texto. É ir àquele povo. É beber aquela água, comer aquela comida, sentir aquele cheiro. É recriar aquela época. Veja o que foi dito, depois veja os princípios do que foi dito e como o Novo Testamento aborda esses princípios.

 

2. ENTENDA A MANEIRA DE TEOLOGIZAR DO ANTIGO TESTAMENTO

                Uma boa análise do Antigo Testamento entende as diferenças entre Antigo e Novo, entre Israel e Igreja, entre a qualidade de bênçãos em um e em outro Testamento. Para o hebreu, a vida se cingia estritamente a este mundo. Especulações escatológicas não eram a sua principal preocupação teológica. Quando havia esta preocupação era com “o dia do Senhor”, o dia do triunfo de Adonai e Israel sobre o mundo. A vida se resumia a isto aqui. O autor de Eclesiastes não estava sendo pessimista, mas apenas coerente em sua teologia, nesta expressão de 9.5-6: “Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos nada sabem; para eles não haverá mais recompensa, e já não se tem lembrança deles.  Para eles o amor, o ódio e a inveja há muito desapareceram; nunca mais terão parte em nada do que acontece debaixo do sol”. Esta era a crença do Antigo Testamento e não seu desânimo particular.

 

                Quanta confusão na chamada teologia da prosperidade exatamente por se presumir a igualdade entre os dois Testamentos. As bênçãos a Abraão eram de ordem material: terra, bens e muitos filhos. A vida era só isto aqui. De que adiantava falar-lhe do céu, de perdão dos pecados, de viver na eternidade com os salvos? As bênçãos do Novo Testamento seguem por outra linha: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3). O mundo do Antigo Testamento era mais simples, dentro da perspectiva de uma progressividade de revelação ainda iniciante. Veja-se esta palavra de Elifaz, em Jó 4.7-8: “Reflita agora: Qual foi o inocente que chegou a perecer? Onde os íntegros sofreram destruição?”. Responderíamos: “Milhares de mártires morreram assim, Elifaz”. Para o hebreu, os planos de recompensa a punição sucediam aqui, neste mundo. O cristão olha para um futuro mais distante, firme como quem vê o invisível, e crê na eternidade. O hebreu esperava nesta vida. O cristão espera nesta e numa vida além. Citando o apóstolo Paulo: “Se é somente para esta vida que temos esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos de compaixão” (1Co 15.19).

 

                Por esperar apenas nesta vida, o hebreu amaldiçoava. O castigo tinha que acontecer aqui, porque se não o pecador estaria burlando a lei moral de Deus. Eis o Salmo 137.8-9: “Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez! Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha”. Eis Jesus, em Lucas 6.28-29: “Abençoem os que os amaldiçoam, orem por aqueles que os maltratam. Se alguém lhe bater numa face, ofereça-lhe também a outra.” A mensagem do Salmo pode nos dar satisfação pessoal, mas somos exortados a agir de outra maneira, por Jesus. Cremos na justiça final na vinda de Jesus e somos exortados a amar.

 

                Esta visão diferente ficou bem delineada nas palavras de Jesus no Sermão do Monte: “Eu, porém, vos digo…”. Porque Jesus é o eixo hermenêutico da Bíblia, estudamos o Antigo Testamento, entendemos o texto, mas analisamo-lo à luz do ensino do Novo, e  mais particularmente, da palavra de Jesus.

 

                Um bom intérprete do Antigo Testamento para os nossos dias precisa de bom conhecimento teológico, saber as diferenças teológicas entre os dois Testamentos, e ter Jesus como ponto central de sua visão.

 

3. ENTENDA OS ESTILOS DO ANTIGO TESTAMENTO

                Outra questão a se abordar é o estilo literário. Uma epístola é dissertação. Um salmo é poesia. Não se pode interpretar poesia como dissertação. Nesta, a linguagem, é denotativa. O que está sendo dito deve ser entendido linearmente. Naquela, é conotativa. O que está sendo dito deve ser visto por trás das palavras. Como um terço do Antigo Testamento é poesia e ela não se restringe aos livros poéticos, mas se faz presente em várias partes, em alguns momentos se sai da dissertação para a poesia. Num mesmo texto, a linguagem muda e o intérprete precisa de conhecimento e sensibilidade.

 

Um pastor, que depois se tornou bispo, depois apóstolo e agora é “alguma coisa-primaz, tem um livro em que defende uma pré-existência das pessoas. Todos nós já existimos anteriormente. A base é Jó 38.21: “Talvez você conheça, pois você já tinha nascido! Você já viveu tantos anos!”. Deus questiona Jó a explicar o que acontecera na criação. E diz que Jó já era nascido naquela época. Um garoto de 12 anos estudará, em Português, que isto é uma figura de linguagem chamada “ironia”. Mas um pastor interpretou literalmente. E defendeu algo muito parecido com reencarnação. E, como porta-voz único e autorizado de uma denominação, tornou isto uma doutrina.

 

                 A linguagem de poesia é dramática e hiperbólica. Não se pode literalizar. Esta poesia, a hebraica, é mais centrada em paralelismo, repetição de conceitos com outras palavras, no pensamento posterior. Ou anteposição de conceitos. Há muita repetição. Há muita negação, sendo que a segunda parte é a climáxica e a primeira é a base. Há necessidade de entender as repetições e as negações. Há necessidade de se entender os paralelismos.

 

                Quero voltar à apostila sobre o Salmo 1º, que mencionei anteriormente. Comentei a dificuldade para compatibilizar o estilo do salmista com o nosso estilo. Temos mentes diferentes na construção e análise de textos. Um pouco de sua atenção para isto. Disse eu:

 

É fácil observar que há um contraste no texto: o justo e o ímpio. É um recurso da poesia hebraica, o uso de paralelismo. Preste atenção nisto. A poesia hebraica não tem rima, mas se vale muito do paralelismo, a arte de colocar dois pensamentos, um ao lado do outro, para comparação. O paralelismo pode ser sinônimo (idêntico ou semelhante), antitético (quando duas idéias se opõem), climáxico (de clímax) e outros. Há muito deste tipo de paralelismo na Bíblia, como todo o capítulo 10 de Provérbios, por exemplo. Foi a questão de analisar os dois adjetivos, justo e ímpio. Depois, observar que eles têm adjetivos que os descrevem e verbos que realçam (como acontece no hebraico). Uma questão mais: no paralelismo antitético, a idéia mais forte é a segunda. Observe a forma do paralelismo no salmo. Primeiro, embora se fale do justo, descreve-se o ímpio (v. 1) e depois se fala do justo (vv. 2-3). Esta idéia é mais importante. Fala-se depois, novamente do ímpio (vv. 4-5) e a seguir, do justo (v. 6a). Mas, surpreendentemente, o salmo conclui falando do ímpio. No estilo da poesia hebraica, esta acaba sendo a nota mais forte: o fim do ímpio. Parece sem sentido, porque o salmo termina com uma nota negativa. Aprendemos em Homilética que um sermão sempre termina com uma nota positiva. Como agir aqui, em que uma nota negativa é a mais forte? Há um ensino na estrutura: ela mostra os dois limites do texto. Começa com ashri, que traz a idéia de em marcha, de se estar indo para algum lugar. E termina com abad, lugar nenhum. O intérprete deve fazer esta observação. O justo vai a algum lugar. O ímpio, a lugar algum. O salmo tem dois limites opostos. É uma figura a ser explorada.[2]

                Nas primeiras vezes em que preguei no Salmo 1º., em mensagem expositiva, derrapei nesta curva: o  texto termina negativamente. Um anticlímax, portanto. Que verdade eu poderia afirmar? Custei a entender que eu não precisava seguir o estilo do salmista, mas seus princípios. Ele era oriental, construía seu argumento de forma circular, e ia do maior para o menor. Eu sou ocidental, construo meu argumento de forma linear e vou do menor para o maior. Atenção a isto. Trabalhe as idéias, procurando ver como o autor pensou. Mas ponha-as na ordem como você e seu auditório pensariam. Além de estilos diferentes de um autor para autor, fundamentalmente a maior diferença é entre nós e eles.

               

No tópico anterior chamei a atenção para a necessidade de conhecer a Teologia. Neste, de conhecer a forma literária. Os intérpretes cuidadosos necessitam conhecer os estilos literários diferentes e o processo hermenêutico diferenciado para cada um. E precisam saber como trazer de um estilo para o nosso estilo.

               

CONCLUSÃO

                Quanto mais lia o que escrevi, mais perdido me sentia. Porque tinha mais para dizer. Muito do que li. Muito do que intui. Muito do que vi como os outros faziam e aprendi com eles. Mas não há espaço nem tempo suficientes para tal. Por isto vamos a um final que seja razoável.

 

                Pregar no Antigo Testamento exige mais cuidado e mais atenção que pregar no Novo. Exige um bom conhecimento da cultura daquela época. Precisa-se saber dos costumes. O conhecimento da língua hebraica é recomendável. Mas duas questões são básicas. A primeira é que nós pregamos, anunciamos e exaltamos a Jesus. Ensino do Antigo Testamento que não nos leve até Jesus é como essa multidão de corinhos baseados nos salmos: tocar, adorar, aplaudir, contemplar, etc. Cabem em qualquer lugar não cristão, mas com espiritualidade. Pregamos a Cristo, seja em que passagem for. A segunda é uma postura de respeito para com o texto. Não apenas vê-lo como Palavra de Deus, mas respeitá-lo em sua forma. Não forçá-lo, não aculturá-lo a nós, não cristianizá-lo. Entendê-lo, ver o que dizia naquela época e como o que ele disse é avaliado e transformado pelo Novo Testamento. E neste, o cânon dentro do cânon, Jesus, é que o rege. Por isto, seja onde for, que preguemos a Jesus.


[1] COELHO FILHO, Isaltino. Exegese de Livro a Partir da Estrutura Literária – o Modelo dos Salmos. Apostila para Faculdade Teológica Batista de Campinas, 2003.

[2] Ib. ibidem

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