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Pregação bíblica: como manter a relevância e a sensibilidade

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Pregação bíblica: como manter a relevância e a sensibilidade

Preparada e apresentada pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho ao Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, 31.10.8

 

INTRODUÇÃO

Começo pela leitura da Bíblia, não por costume, mas por ser absolutamente indispensável. Leio Neemias 8.8-9: “Assim leram no livro, na lei de Deus, distintamente; e deram o sentido, de modo que se entendesse a leitura. E Neemias, que era o governador, e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que ensinavam o povo, disseram a todo o povo: Este dia é consagrado ao Senhor vosso Deus; não pranteeis nem choreis. Pois todo o povo chorava, ouvindo as palavras da lei”.

Este texto traz a melhor definição de pregação bíblica que conheço. Há quatro aspectos que são admiráveis e que devem nortear nossa pregação:

1) Leram no livro, na lei de Deus

2) Deram o sentido

3) De modo que se entendesse a leitura

4) Todo o povo chorava, ouvindo as palavras da lei.

Pregar é ler a Bíblia, a Palavra de Deus, dar o seu sentido de modo que o auditório entenda o que foi lido e seja impactado pelo que foi dito, porque entendeu a Palavra. Só há pregação quando há ensino da Bíblia. Se a Bíblia não foi lida nem pregada houve um discurso religioso, mas não pregação. E a pregação deve comover as pessoas, deve mexer com seu íntimo. Não é cabível que pessoas sejam postas diante de uma exposição da Palavra de Deus por um homem de Deus e não sintam nada em sua vida. Mesmo que seja uma reação negativa, como a do rei Jeoiaquim, que queimou a mensagem de Jeremias que Baruque lhe leu (Jr 36.23). A exposição da Palavra de Deus deve produzir impacto na vida das pessoas.

Pregar não é dar informações religiosas. É falar das realidades de Deus, e falar com paixão. Porque só pode falar das realidades de Deus quem as vivencia, como era o caso de Esdras, no texto de Neemias. Esdras não era um tagarela de assuntos espirituais. Era um homem de Deus. Dele se diz: “Porque Esdras tinha preparado o seu coração para buscar e cumprir a lei do Senhor, e para ensinar em Israel os seus estatutos e as suas ordenanças” (Ed 7.10). Dizem que há uma crise de pregação em nosso tempo. Creio que a crise seja de homens comprometidos com a Bíblia. É crise por escassez de homens que “tenham preparado o seu coração para buscar e cumprir a lei do Senhor, e para ensinar os seus estatutos e as suas ordenanças”, parafraseando Esdras. A pregação apaixonada de um homem apaixonado pela Bíblia ainda atrai as pessoas. Pode ser desinteressante para um tipo de cristianismo festivo, oba-oba, com a consistência de goma de mascar. Mas cristãos sérios ainda quedam admirados diante da exposição da Palavra de Deus. Por isso, se há crise, não é de pregação, mas de pregadores. Assim temos este assunto: “Como manter a relevância e a sensibilidade na pregação?”. Atrevo-me a alinhavar algumas sugestões nesta palestra.

 

1. DESFAZENDO UM EQUÍVOCO COMUM

Comecemos desfazendo um equívoco comum. Acostumamo-nos a ouvir que “pregar é expor a Palavra de Deus” ou outra afirmação de teor semelhante. É uma declaração verdadeira, mas incompleta. Pregar não é apenas isto. Não apenas pregamos a Palavra, mas pregamos a Bíblia para pessoas. Este é nosso alvo: pessoas, alcançar pessoas. Pregamos para que pessoas sejam alcançadas pela Palavra de Deus. Pregar para aves e bichos é para Francisco de Assis. O objetivo da pregação, dizem os manuais de Homilética, é promover a glória de Deus. Concordo. Mas a glória de Deus não aparece no vácuo, ao som de trombetas. Ela aparece na vida das pessoas alcançadas e transformadas pela Palavra. Porque Deus já tem glória absoluta em si e não será um sermão que a aumentará ou a diminuirá. Mas se pessoas são impactadas e se convertem a Cristo ou consagram suas vidas ao serviço do Senhor, então a glória divina brilha sobre os homens.

Pregar é expor a Palavra de Deus de maneira que os ouvintes entendam e sejam alcançados por ela. Há um objetivo na pregação, e este objetivo são pessoas. Toda profecia e toda pregação, quer no Antigo quer no Novo Testamento, aconteceram para que pessoas entendessem o que Deus queria delas. O alvo eram as pessoas.

 

2. DELIMITANDO ÁREAS DE ATUAÇÃO

Reconheci quatro aspectos no texto de Neemias 8.8-9: (1) Leram no livro, na lei de Deus; (2) Deram o sentido; (3) De modo que se entendesse a leitura; (4) Todo o povo chorava, ouvindo as palavras da lei. Delimitemos áreas de atuação, que produzem estes aspectos.

O primeiro, o segundo e o terceiro dependem de nós. O quarto depende de Deus. O pregador não deve manipular pessoas. Há muita manipulação no meio evangélico, o que é deplorável. Não devemos ter a preocupação de produzir emoções, mas sim a de sermos fiéis e sinceros na pregação. Quem produz emoções é o Espírito Santo. Compete a ele mover os corações. Há muito pregador querendo fazer o papel do Espírito. Isto é blasfêmia.

Deixei o pastorado de uma igreja, no mês passado, após um bom tempo de trabalho. Um dos líderes, tentando me demover, disse: “Se sair agora, tudo que o senhor fez nestes 9 anos morrerá”. Eu lhe disse: “Que morra o que eu fiz. Mas o que Espírito Santo fez através de mim não morrerá”. Não tente produzir emoções porque elas morrerão. Tudo que o homem faz acaba por morrer. Deixe-se ser usado por Deus, deixe que ele produza emoções. O que ele faz nunca morre.

O pregador não é um ativista solitário. O Espírito de Deus está com ele, age por ele, fala por ele. Na tarefa de pregação, o Espírito é parceiro do pregador, e o pregador, em outra figura, é seu instrumento. Com isto quero chamar a atenção para um ponto importantíssimo: a pregação requer espiritualidade. Spurgeon, certa vez, pregou um sermão com tanto sentimento que um homem lhe disse: “Parecia que o senhor havia saído de diante do trono de Deus quando foi para o púlpito”. Spurgeon lhe respondeu: “Mas eu saí!”.

Há dois elementos indispensáveis na vida do pregador: o saber e o ser. Ele não prega abstrações ou generalidades sobre Deus, mas transmite vida. E a vida que ele transmite precisa transparecer na sua. A espiritualidade de que falo é mais que uma oração murmurada no púlpito. É cultivada, como na experiência de Spurgeon.

Técnica não substitui caráter nem vida. É boa, mas um caráter espiritual aproveita-a mais. Um púlpito fraco, sem espiritualidade, produzirá um rebanho fraco e sem espiritualidade. Há ovelhas que se alçam sobre os pastores, mas no todo, dificilmente uma igreja será mais espiritual e mais piedosa que seu pastor. Perguntaram uma vez a um famoso e bem sucedido pregador: “Como incendiar uma igreja?”. Ele respondeu: “Acenda um fogo no púlpito”. Via de regra, a igreja é o que seu pastor é. Hoje pensamos em técnicas e métodos, mas consideremos que Jesus deu profetas, pastores e mestres à igreja (Ef 4.11) por algum motivo. Não deu treinadores, mas homens da Palavra. Homens que devem viver a Palavra, ser apaixonados por ela, e pregadores dela.

Assim delimitei duas áreas: a de nossa responsabilidade e a de responsabilidade do Espírito de Deus. Estas duas não são paralelas, mas se fundem na vida do pregador. Cabe aqui o texto de Gálatas 2.20: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim”.

 

3. RELEVÂNCIA, O QUE É ISTO EXATAMENTE?

Muitos confundem relevância com contemporaneidade e por isso há muito púlpito que trata de assuntos contemporâneos, porém irrelevantes para a vida do povo. Big Brother Brasil é contemporâneo, porém irrelevante. Madonna e aquela cantora herdeira de uma rede de hotéis, cujo nome me foge, são contemporâneas, porém irrelevantes. Há púlpitos que ressoam as manchetes de jornais e os pensamentos de pensadores prediletos dos pregadores, mas que trazem um conteúdo absolutamente irrelevante para os ouvintes. Arrota-se erudição com o hálito da banalidade.

Os jornais televisivos nos enchem de irrelevância. Uma ocasião, um sujeito brigou com a namorada, num desses países cobertos de gelo. Zangado, pegou um trator e saiu esmagando carros. Eu morava em Brasília, quando isto aconteceu. E, recordo-me, esta notícia irrelevante saiu nos sete canais televisivos da cidade, na época.

Há púlpitos cheios de modismos, e irrelevantes para o povo de Deus. Mas o pregador não pode ser irrelevante. Certa vez, preguei em Mateus 12.20, “O morrão que fumega”. Uma senhora me procurou depois. Fora à igreja aquela manhã para satisfazer uma amiga de trabalho, minha ovelha. Resolvera se suicidar e a amiga muitas vezes a convidara para ir à igreja. Decidira ir para alegrá-la, mas seria a última coisa que faria naquele domingo. Na realidade, penso que ela esperava receber alguma coisa na igreja. E Deus trabalhou em sua vida para que isto acontecesse. Ela descobrira que o marido tinha um amante. Surpreendera-os no próprio leito conjugal. Chocada, deu uma oportunidade-ultimato ao marido, que preferiu ir embora com o outro homem. Profundamente abalada, machucada porque fora trocada por um homem, sem desejo de viver, foi à igreja por motivação social. O sermão daquela manhã era sobre como Jesus trata os machucados pela vida. E ela me disse: “Se o que o senhor disse é verdade, então ainda me resta uma esperança”. Tempos depois ela se tornou membro da igreja. Não estou sendo inconfidente porque não revelo nome nem lugar e tenho autorização da senhora para mencionar o caso genericamente porque na igreja o assunto morreu entre nós dois. Mas suponhamos que naquele dia eu resolvesse dar o relatório do que foi a assembléia da convenção, algo contemporâneo, e assim não ter que preparar sermão. Como um colega disse certa vez: “Esse negócio de assembléia é uma bênção, fiquei três domingos dando relatório da Convenção e não precisei preparar sermão”. Deprimente!

Não sou um bom pregador. Na realidade, sou um pregador mediano e esforçado. Mas tratei de um assunto relevante: como uma pessoa pode se recuperar de um baque na vida. Nossas igrejas estão cheias de pessoas espancadas pela vida, que precisam ouvir algo que sirva para elas. Elas não ligam para Comte, Marx, Hegel, Nietzsche ou Paul Tillich. Ligam para suas vidas sofridas. Relevância é curar as feridas dos machucados e não, necessariamente, falar do que é atual.

Ouso apresentar aqui algumas sugestões sobre como ser relevante na pregação.

1) Pregar não é dar informações. Não é dar aulas de Bíblia ou de moralidade, ou, ainda, de ética social. Como Paulo disse no seu discurso de despedida em Éfeso é “anunciar todo o conselho de Deus” (At 20.27). Já vi pregador ir para o púlpito com uma folha de papel e uma caneta na mão, e dizer que não seria um sermão, mas uma aula participativa. E começou a fazer perguntas ao povo e anotar o que diziam. Os crentes foram se retirando, aos poucos. Se não tem o que pregar, não vá ao púlpito. Se não tem o que dizer, ceda lugar a outra pessoa. 2Timóteo 4.1-2 cabe aqui: “Conjuro-te diante de Deus e de Cristo Jesus, que há de julgar os vivos e os mortos, pela sua vinda e pelo seu reino; prega a palavra, insta a tempo e fora de tempo, admoesta, repreende, exorta, com toda longanimidade e ensino”. Pregar é isto.

2) Esteja vivo. A Bíblia é a Palavra viva de um Deus vivo. O pregador precisa ser vivo. Mortos e moribundos espirituais não transmitem vida. Há pregadores mais entusiasmados com seu time de futebol ou seu político que com o evangelho. A tarefa mais importante de um pregador é cuidar de sua vida espiritual. Não leia a Bíblia profissionalmente, em busca de sermões. Eles serão medíocres. Leia-a para você, leia-a com fome, leia-a com respeito, para aprender. Você terá sermão. Um crente pediu ao seu pastor para falar mais de Jesus e menos de um pensador que o pastor apreciava e citava cinco ou seis vezes por sermão. O pastor respondeu que era apaixonado pelo pensador. A resposta do crente foi curta e dura: “Pastor, seja apaixonado pela Bíblia”. Sua relação com a Bíblia deve ser passional, nunca profissional. Não a leia para buscar algo para a vida dos outros. Leia para buscar alimento para si. Tenha fome por ela.

3) Lembre-se: você prega para pessoas. Não pregue o que você gosta, mas o que seu povo precisa. Pergunte-se: “Quais as necessidades destas pessoas?”. Esta é a questão fundamental para ser relevante: quais as necessidades do auditório? Um homem foi à igreja, enquanto a esposa permaneceu em casa, pois estava doente. Quando ele voltou, ela perguntou: “Qual foi o assunto do pastor?”. Ele respondeu: “Efésios 1, porque ele está pregando uma série de sermões em Efésios”. “Mas o que ele disse?”, voltou ela. “O que está em Efésios 1.15-16”, disse o marido. “Mas o sermão tinha algo a ver com eu ser paciente terminal, nossa filha adolescente estar grávida e nosso filho ser viciado em drogas?”, perguntou a mulher. “Não”, respondeu o marido. “Mas sobre o que, exatamente, ele falou?”. O homem encerrou a conversa: “Eu já disse: sobre Efésios 1.15-16”. O sermão pode ser bíblico e ter exegese bem fundamentada, mas ser absolutamente irrelevante. O pregador é alimentador do povo e não emissor de opiniões que ele julga fenomenais e que abalarão o mundo, mas sequer arranham a superfície da vida das pessoas. Nem um doutrinador ideológico tentando vender seu estilo de vida ou sua perspectiva cultural. É um alimentador do povo e deve servir o que povo precisa. Ninguém perde sono com heteus, cananeus, heveus e jebuseus. As pessoas perdem sono com vida sexual frustrada, mulher frígida, marido pulando cerca, filhos rebeldes, medo de não sobreviver economicamente. As pregações dos neopentecostais me soam absurdas, mas eles descobriram algo que muitos tradicionais não descobriram. Eles falam sobre as necessidades do povo. Muitos de nós damos informações bíblicas. Jesus não fazia exegese do Antigo Testamento, mas falava da vida real de pessoas concretas em situações concretas.

É preciso ser relevante. Dizer o que o povo precisa ouvir, e não o que gostamos de dizer. Há pregadores que gostam de temas sociais e só pregam sobre este assunto. Há gente que gosta de pregar sobre a volta de Cristo, e só prega sobre isto. O tema de nossa pregação não deve ser o que gostamos. É preciso saber as necessidades das pessoas. Não leia apenas livros. Leia gente. Muitos pregadores lêem livros pesados e sisudos, mas não lêem pessoas. Acostume-se a ler pessoas. Elas têm histórias interessantes e a leitura delas sinaliza muito do que devemos pregar.

4) Não deixe de ser povo. O pastor se elitiza e muitas vezes se distancia, culturalmente (não academicamente), do rebanho. Lê livros que ninguém lê, não toma ônibus lotado para ir ao trabalho, não marca ponto, faz seu horário de trabalho, não usa vale-refeição nem come de marmita ou em refeitório de fábrica. Vá à casa do povo, veja como ele se sente, o que pensa, como é seu lar. Muitos pastores são executivos espirituais. Tratam dos negócios do Reino, mas não de gente. Temos muitos executivos eclesiásticos e poucos pastores de rebanho. Nas grandes cidades, sei disto por experiência, um programa de visitação é impossível. Seja disponível, acessível a qualquer hora. Honestamente: prefiro a companhia das minhas ovelhas (quando as tenho) que qualquer reunião denominacional. Fazem-me bem.

Em Ezequiel 3 há uma sequência significativa de eventos. Primeiro, o profeta recebe ordem de comer o livro que traz a mensagem de Deus (v. 1). Depois de comer o livro ele é comissionado como pregador (v. 4). Mas antes de pregar, ele se senta “pasmado” por sete dias com o povo (v. 15). A ordem é fantástica. Primeiro, internalizar a Palavra de Deus e ser alimentado por ela. Depois é que se tem autoridade para pregar. Não se pode pregar sem se alimentar do Livro. Mas só pode dizer o que Livro diz quem se senta com o povo, e “pasmado”, ou seja, sofrendo com o povo. Burgueses enfatuados não pregarão com emoção, mas quem se senta com o povo depois de comer a Palavra tem autoridade para pregar. Este é o pregador relevante.

 

4. SENSIBILIDADE, O QUE É ISTO?

Isto não é coisa de presidente da MCA? O pregador tem que ser resoluto, firme, decidido. Tem que mostrar segurança e rumo.

O pregador do evangelho não é um simples transmissor de recados. Entendo e respeito a dimensão que os crentes dão à expressão de que o pastor vai trazer o recado de Deus ou é o mensageiro da noite. Não é disto que falo. Neste sentido ele é mensageiro e traz um recado. Quando digo que ele não é simples transmissor de recados é no sentido de que ele não deve proferir algo que não vivencia nem sente ou cuja dimensão esteja desconsiderando. O pregador não pode ser impessoal. Ele fala de um Deus pessoal, de um Salvador pessoal, de uma divindade sensível. E por sensibilidade não me refiro a sentimentos vagos, etéreos e poéticos. Mas a uma postura emocional que tomamos e que decidimos ter.

Mais uma vez ouso fazer algumas recomendações, desta vez sobre a questão da sensibilidade.

1) Cultive a sensibilidade. Assisti a um filme chamado Equilibrium, que mostra uma sociedade que reprimia os sentimentos. Há um sacerdote incumbido de manter as pessoas insensíveis, patrulhando-as, caçando-as, eliminando tudo que produza sensibilidade. Os sentimentos são desestabilizadores e vistos como ruins. Numa cena ele descobre obras de arte que os dissidentes guardaram. Lá estão os quadros mais famosos dos pintores mais geniais. A primeira obra é o original da Mona Lisa. O sacerdote ordena que o quadro seja queimado e não se comove. Permanece absolutamente impassível. Mas ele não consegue escapar de Beethoven e da 9ª. Sinfonia, que reputo, como apreciador e esteta, a maior peça musical já composta. Ele se descobre chorando ao ouvi-la. Eu a ouço quatro, cinco vezes por semana e ainda me comovo. Mas ele se desequilibra totalmente quando pega um filhote de cachorro, muito bonito, fofinho, como diriam as meninas, e recebe dele uma lambida. Tornando-se sensível ele muda sua personalidade, e sua vida é direcionada em outro rumo. A lição do filme é clara: um mundo com sensibilidade, mesmo com todas as consequências que ela traz, é muito melhor que um mundo seco, sem sentimentos, impessoal, com tudo em ordem. Mutatis mutandis, sucede assim com o ministério da pregação. Um pregador sensível sofre como Jeremias, com seu clamor em 4.19 (“Ah, entranhas minhas, entranhas minhas! Eu me torço em dores! Paredes do meu coração! O meu coração se aflige em mim. Não posso calar; porque tu, ó minha alma, ouviste o som da trombeta e o alarido da guerra”), mas é no sofrimento que ele prega seus melhores sermões. Como disse Goethe: “Nunca passei por uma grande dor sem fazer dela um grande poema”. É preciso cultivar a sensibilidade, mesmo que isto traga sofrimento. E o mundo é belo e deve provocar sensibilidade num pregador! Poucas coisas são tão belas como o pôr-do-sol em Brasília, que o encontro das águas do Solimões e do Negro, que a curva do Negro na praia da Ponta Negra, em Manaus, e as tulipas de Holambra. Poucas coisas são tão comoventes como o sorriso e o brilho nos olhos da mulher amada, que receber das mãos da mulher amada uma xícara de café fresco que ela acabou de fazer, que a gargalhada da criança quando brincamos com ela. Como é lindo ver um pai caminhando de mãos dadas com um filho! Como há coisas belas no mundo! O pregador sensível vê a beleza do mundo ao seu redor, vê poesia no cotidiano e no trivial. Deixa-se tocar. Desconfio das pessoas sem sentimentos ou que os reprimem. E mais ainda das pessoas que não vêem beleza no cotidiano. As ilustrações de Jesus eram do mundo ao seu redor. “Olhai os lírios do campo”, “as aves do céu”, “um semeador saiu a semear”, “um homem tinha dois filhos”, “o campo de um homem” e por aí vai. Ele não era conceitual, mas coloquial. Falava das coisas simples e belas do mundo. Isto é ser sensível, ver o mundo com bons olhos, ver poesia no nada, encantar-se com o trivial. Na expressão do doutrinador da menina Sofia, em O mundo de Sofia, deixar-se encantar e nunca perder a capacidade de ser encantado.

2) Goste de gente. Fomos chamados para trabalhar com gente. Gente é irritante, machuca, se mete onde não deve, diz e faz o que não deve. Muitas vezes nos machuca. E gente da igreja sabe machucar como nem os não crentes o fazem, porque sabem usar palavras e usam a espiritualidade como disfarce. As pessoas mais intratáveis que conheci foram pessoas da igreja. Mas gente é fascinante e enriquece nossa vida. Fomos chamados para ministrar a pessoas. E quem gosta de trabalhar com gente é mais sensível. Não trabalhe com conceitos e projetos. Tenha conceitos e projetos, mas lembre-se que foi chamado para trabalhar com pessoas. Elas devem ser seu alvo principal. Pregue com amor, nunca com ódio. Pregue com o coração, não com o fígado. Se o fígado toma o lugar do coração, o ministério de pregação fica invalidado. Jesus pregou a destruição de Jerusalém, mas chorou por ela. Ele não era iracundo, mesmo nas suas exigências. Que não eram poucas.

3) Ame seu rebanho. Abra seu coração para as pessoas que Deus colocar sob sua responsabilidade. As pessoas sabem quando são usadas e quando são amadas, e respondem com amor a quem as ama. Isto aumenta a esfera de sensibilidade no relacionamento. A igreja para onde Deus o enviar deve ser a melhor igreja do mundo, a cidade para onde Deus o enviar deve ser a melhor cidade do mundo, o bairro onde sua igreja estiver deve ser o melhor bairro do mundo. Mostre que está feliz, que está satisfeito. Não rumine frustrações. Elas matam a sensibilidade positiva a fazem surgir uma sensibilidade rançosa. E quando acontece isto, é hora de ir embora. Só se pode alimentar um rebanho por amor, nunca por profissão. Pastorado não é profissão, é paixão. Atos pastorais, principalmente o de pregar, precisam de um coração sensível e amoroso. Isto se consegue quando se ama o povo e o pregador se sente bem com o povo. Quando se perde isto, é hora de ir embora.

4) Pense no que está acontecendo quando você prega. Cada pessoa que o ouve colocou 30 minutos de sua vida em suas mãos. Como no episódio que relatei, da senhora que pensava em se suicidar, aquele tempo pode fazer uma diferença fundamental na vida do ouvinte. Um sermão do Pr. João Falcão Sobrinho me levou a aceitar a Cristo. Outro sermão dele me levou a entender que deveria ser pastor. Os sermões dele reorientaram minha vida. Por trás de tudo, o Espírito Santo. Mas os sermões foram o instrumento. Isto deve provocar em nós um profundo sentimento de respeito por quem nos ouve e pelo momento que vivemos. Não se pode ser leviano nem deixar de se sentir responsabilizado. É momento de contrição, de seriedade, de profundo zelo. Um semblante tranquilo pode estar ocultando um coração oprimido em um ouvinte. A pregação não pode ser vista como um mero ato de culto, ou um item na liturgia, mas como a voz de Deus por um homem aos homens. Por vezes, estamos tão conscientes de nossas limitações e pecados que não levamos a sério o que fazemos. Depreciamos nosso trabalho. Não suceda isto. Pregar é um trabalho que requer extrema sensibilidade. Um sermão pode mudar uma vida, restaurar um relacionamento, levantar um caído.

5) Enriqueça-se e enriqueça a outros com suas emoções. Ezequiel foi liberado para pregar depois que se sentou com o povo e ficou “pasmado” como o povo. Identificou-se emocionalmente com o povo a quem deveria pregar. Ele identificou suas emoções com as do povo. Oséias escreveu um belo poema, em seu livro. O capítulo 11 é uma das peças mais bonitas de toda a Bíblia. Mas foi a dor que o sensibilizou a escrever. Paulo teve um encontro transformador com Jesus, que mudou sua vida, e fez do homem que bufava ódio, em Atos 9.1, o homem que escreveu 1Coríntios 13. Todos foram homens sensíveis, abertos para o sentimento.

Sensibilidade é reconhecer que não somos máquinas. Somos pessoas. Sofremos, choramos, pecamos, nos irritamos. Mas estes sentimentos mostram que estamos vivos. E quem é maduro, procura melhorar suas emoções, corrigir seus erros, aperfeiçoar sua vida. Tenho medo de quem nunca chora, nunca ri e, pior, de quem nunca extravasa emoções. Pessoas apáticas podem ser cruelmente insensíveis. Pessoas apáticas não têm o que pregar. Apenas dão informações bíblicas. E isto não é pregar. No engraçado e pobre “evangeliquês” de hoje, pode ser ministrar a Palavra, mas pregar não. Ministrar a Palavra, desculpem-me, não significa muito. Mas ensinar a Palavra de Deus ao povo de Deus, na qualidade de homem ou mulher de Deus, é outra coisa.

6) Seja apaixonado pela Bíblia, mais que por qualquer autor secular. Subordine a ela tudo que ler de autores seculares. Não a interprete à luz do mundo, mas interprete o mundo à luz dela. Não exulte com Kierkegaard, masa com Jesus Cristo. Nenhum autor é tão profundo como o autor da Bíblia, que é o Espírito Santo, à luz de 2Pedro 1.21: “Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo”. Só se é relevante no púlpito quando se prega a Bíblia, o livro mais relevante do mundo, com paixão, ao povo de Deus, a igreja, o povo mais relevante do mundo. Na medida em que nos encharcamos de Bíblia vamos nos sensibilizando. Começamos a examiná-la e daí a pouco os papéis se invertem: é ela quem nos examina. Ter paixão pela Bíblia é fascinante. Ficamos pessoas mais sensíveis à voz de Deus, às realidades espirituais. Onde falta sensibilidade falta escrutínio da vida ao ensino da Bíblia.

 

CONCLUSÃO

Relevância se aprende. Mas sensibilidade não se transfere nem se ensina. É algo que se desenvolve. Para desenvolver a sua, seja gente. Seja amoroso, seja menos amargo e menos crítico. E, muito importante: não seja um profissional da pregação nem um astro do púlpito. Seja uma pessoa encharcada da Bíblia, apaixonada pelo seu ofício, e amante do povo que o ouve. Não faça deles um fã clube, mas um rebanho por alimentar e orientar. Ame-os, veja-os com olhos ternos. São seus filhos a quem você está dando de comer. Aí, sua pregação será relevante e sensível.

Para que o Nome Sobre Todo Nome seja engrandecido.

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