Isaltino Gomes Coelho Filho
Nos anos sessentas, os religiosos deram ao mundo o pastor batista Martin Luther King Jr., Prêmio Nobel da Paz. Nos anos oitentas, trouxeram ao cenário mundial o bispo anglicano Desmond Tutu, também Prêmio Nobel da Paz. Nos anos noventas, foi a vez de Madre Teresa de Calcutá, agraciada, também, com o Nobel da Paz.
Depois vimos gente dando pontapé em santa, pela televisão. Vimos fotos de Roberto Marinho, sendo comido por baratas, em um programa religioso. Ouvimos um ministro religioso dizer, pela televisão, com todas as letras, que “conosco não tem essa de levar um tapa e virar a outra face; conosco é bateu, levou”. Por fim, ouvimos falar de jihad, de “guerra santa”. Uma pergunta que se pode fazer é esta: “Mudou a religião ou mudei eu?”
O Dr. King, o bispo Tutu e a madre Teresa, de doutrinas teológicas diferentes, tinham o mesmo princípio subjacente às suas crenças: o valor da vida humana. Como religiosos viam a dignidade intrínseca do ser humano, tendo-o como imagem e semelhança do Deus em que criam. Muito da religiosidade contemporânea privilegia conceitos e idéias como mais importantes que as pessoas. E muitos segmentos religiosos brigam por espaço e por clientela, como qualquer empresa comercial. O consumismo ocidental, que julga as pessoas pelo que elas possuem e não pelo que são, foi metamorfoseado de religião. O importante é ter carro novo, casa com piscina, ser empresário, e não mais ter caráter, retidão e integridade. As realidades espirituais e morais foram trocadas pelos bens materiais. O psicologismo barato da auto-ajuda tomou o lugar do Transcendente e do próximo. Agora, a questão é primeiro eu e que se danem os demais.
Pode-se dizer de alguns ensinos religiosos o mesmo que se diz de alguns sistemas econômicos: “esqueceram-se das pessoas”. O povo passou a ser um detalhe.
Mas este espaço não é para discussões teológicas. Se a questão foi aqui levantada, e de forma ligeira, é apenas para mostrar que o esquecimento do próximo e do amor ao outro, comuns no mundo secular, migrou para o mundo religioso. Como numa das peças de Sartre, “o inferno são os outros”. E parece que “o céu sou eu”.
Tudo isto me veio à mente quando, olhando o calendário, descobri que dezembro está chegando. Vem outro natal por aí. Ouviremos toda aquela cantilena emotiva que sempre ouvimos. Locutores de voz artificialmente solene lerão textos banais que outros escreveram e aos quais eles emprestarão a tonalidade de sua voz para estarem em sintonia com a época. Ouviremos de novo a harpa paraguaia nos supermercados. Chuck Norris, Schwarzenegger e Rambo cederão lugar a filmes adocicados. Que logo cederão seu espaço à violência dos filmes de aventura. Aliás, a violência é um dos maiores entretenimentos de nossa sociedade. Os pobres serão lembrados, e enaltecidos. E depois esquecidos, mais uma vez. Veremos, de novo, a campanha “Natal sem fome”. Em contrapartida, alguns se empanturrarão de comida. Cartõezinhos e e-mails natalinos serão enviados em profusão. Crianças ganharão o brinquedo da moda. No dia 26 voltaremos à vida real. Alguns evangélicos combaterão o natal, dizendo ser ele uma festa pagã, e voltarão à suas festas judaicas, esquecidos de que elas são pagãs, pois o tempo do judaísmo passou. Teremos toda aquela rotina de natal, mais uma vez. Atividades, festas, um humanismo de momento, mas com as pessoas sempre em segundo plano.
Precisamos redescobrir o próximo. Devemos trazer ao cenário, novamente, o valor da vida humana. Uma de nossas maiores necessidades é que solidariedade deixe de ser o fio condutor de programas emotivos na televisão e passe a ser um estilo de vida. Precisamos compreender que a fome de uma pessoa é um insulto a toda a raça humana, e o desrespeito a uma pessoa é uma agressão a toda humanidade.
Em suma, eis a questão: precisamos de pessoas que queiram ser gente, e que amem gente. Há muitos amando instituições e ideologias e poucos amando gente. E amor é mais que sentimento. É ação. Está faltando isto ao mundo. E, infelizmente, a muitas igrejas. Elas precisam voltar a se verem como gente, mais que como instituições. Gente salva, gente redimida por Cristo, mas gente.