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Ódio e amor

Um estudo em Mateus 5.38-48, preparado por Isaltino Gomes Coelho Filho

para a revista “Você”, da UFMBB

Continuando nosso estudo no sermão do monte, chegamos a este ensino de Jesus sobre ódio e amor. Nele encontramos as maiores dificuldades para praticarmos o sermão do monte. Qual de nós, realmente, recebendo um tapa no rosto permite ao agressor bater no outro lado? Qual o cristão que, sendo processado e correndo o risco de perder algo (a túnica), cede também algo mais valioso (a capa)? Não estão corretos os críticos que dizem que o sermão do monte é uma utopia, isto é, algo impossível de ser vivido?

E se fôssemos abrir mão de nossos direitos e se nunca nos defendêssemos, estaríamos sendo justos para conosco e para com o próprio sistema de relacionamentos no mundo? Como entender esta declaração de Jesus, num mundo mau como o nosso?

ALGUMAS ADVERTÚNCIAS

Antes de responder, precisamos ser advertidos sobre quatro questões. A primeira é que o mundo de Jesus não era inferior ao nosso, em termos de maldade. A segunda é não devemos amaciar o que a Bíblia diz. O que está escrito está escrito. A terceira é que não temos o direito de escolher o que nos parece aplicável e o que não nos parece aplicável, na Bíblia. A quarta é que precisamos saber, exatamente, o que estava sendo dito naquela época, e não interpretarmos o texto dentro de nossa cultura. Nós aplicamos seus princípios em nossa cultura, mas precisamos saber o que foi dito dentro da cultura daquele tempo.

Devemos nos submeter humildemente ao ensino bíblico, sem sermos seletivos. Toda a Bíblia é Palavra de Deus, e não apenas as partes das quais gostamos ou as que nos parecem mais suaves. Assim como nos deu uma revelação, Deus nos deu inteligência para estudá-la. Conhecer a cultura em que a Bíblia foi revelada nos ajudará a entender o que está sendo dito. E tenhamos em mente que se nosso mundo tem mais tecnologia que o de Jesus, não temos um mundo diferente em termos de maldade e de pecado.

Nosso texto traz dois temas: “Não seja vingativo” (5.38-42) e “Ame os que o odeiam” (5.43-48). Busquemos compreender o ensino de Jesus, e aplicá-lo ao nosso tempo, tendo estas questões em mente.

NÃO SEJA VINGATIVO – 5.38-39

Jesus cita a lei de Moisés: “Olho por olho, dente por dente”. A expressão se encontra em Levítico 24.20, e faz parte do que se chama de Lex talionis, ou “lei de talião”. Era o direito de retaliação, em que uma pessoa agredida poderia retribuir ao seu agressor na mesma medida. Era um princípio do direito mosaico. Vinha com o peso da autoridade de Moisés.

Jesus afirma sua autoridade: “Eu, porém, vos digo”. Aprendemos aqui que ele não sugere ou diz que acha, mas ele diz. Ele tem uma autoridade nova, que ousa discordar de Moisés e ensinar de outra maneira. A lei de talião era o direito de vingança. Jesus diz para renunciar à vingança. Mais tarde, o apóstolo Paulo dirá: “Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas daí lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12.19). O seguidor de Jesus não se vinga, mas deixa nas mãos de Deus. Isto não significa ser uma pessoa tipo “sangue de barata”, como se diz. Significa confiar que Deus é juiz, que ele toma nossas dores (“… aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho”- Zc 2.8), e que não podemos deixar que a ira nos domine (“Se vocês ficarem com raiva, não deixem que isso faça com que pequem e não fiquem o dia inteiro com raiva”- Ef 4.26, Linguagem de Hoje). A ira é má conselheira. “A ira do insensato logo se revela; mas o prudente encobre a afronta” (Pv 12.16).  Jesus não deseja que seus seguidores sejam insensatos, mas sábios, não sendo dominados pela ira. A vingança é manifestação de ira e é demonstração de pouca sabedoria.

Mas isso significa que, levando um tapa no rosto, devemos oferecer o outro e apanhar mais? Não, não é isso. Eis o que lemos no rodapé da Bíblia King James: “Entre os judeus, na época de Jesus, o ato de bater na face direita de alguém, com as costas da mão, era um insulto e uma provocação; não exatamente uma agressão. O insultado poderia revidar ou ir ao tribunal pleitear uma punição, em dinheiro, pela ofensa. Jesus exorta seus discípulos a oferecer a outra face, em sinal de paz e disposição para um acordo”. Não é que devemos ser “saco de pancadas”, mas termos disposição de “se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens” (Rm 12.18).

EM DEMANDA NA JUSTIÇA, SEJA SENSATO – 5.40-42

Agora entra a questão de alguém querer tirar a túnica do cristão e ele lhe dá a capa. Isto não é ser tolo? Alguém quer me roubar e eu lhe dou mais ainda? A questão não é de roubo; é de um processo na justiça: “pleitear”. Na lei dos fariseus, quando alguém não pagava uma dívida, a pessoa a quem ele devia podia pedir sua túnica. Se ele não desse, poderia entrar na justiça (naquela época as roupas eram muito caras e consideradas como patrimônio financeiro). Em Deuteronômio 24.10-13 lemos alguma coisa sobre tomar a roupa do devedor e lhe devolver, se ele fosse pobre. Tudo isto trazia muita discussão em tribunais.

Novamente Jesus ensina preciosa lição. Os seus seguidores devem ser pessoas de nível moral mais elevado. Se for credor, desista do penhor. Se for devedor, dê mais do que deve. Entregue a capa, que era uma peça sobre a túnica. E novamente usamos a Bíblia King James, comentando esta passagem: “Para os discípulos de Jesus, o direito jurídico já foi abolido na Cruz, a nova ordem é a Lei do Amor em Cristo”.  Mais tarde Paulo exortará os cristãos de Corinto a evitarem demandas judiciais (1Co 6.1-8). E se alguém pensa que isto é ser tolo, novamente lembremos: o seguidor de Jesus deve ter uma conduta altruísta, nunca mesquinha, e deve ter sempre um comportamento acima da lei dos homens. Ele deve ser um modelo de vida, e os que olham para ele devem ver que seu estilo de vida é superior, porque é o estilo proposto por Jesus.

A figura seguinte tem a ver com outro costume jurídico da época. Se um viajante pedisse a uma pessoa que o acompanhasse em uma viagem e esta se negasse, se a que pediu fosse assaltada, a comunidade responsabilizaria o que recebeu o pedido e se negou a cumpri-lo. O verbo traduzido por “obrigar” tem a idéia de “recrutar à força”. A pessoa podia pedir tanto que seria quase um recrutamento obrigatório. Que o seguidor de Jesus nunca se negue a fazer o bem, a ajudar alguém, a acompanhar uma pessoa em momentos de perigo. Deve dar aos necessitados e nunca fugir deles (v. 42).

AMAR O PRÓXIMO E ODIAR O INIMIGO? – 5.43-47

“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (v. 43). A lei não mandava odiar o inimigo! Mandava amar o próximo (Lv 19.18), mas odiar o inimigo, não! Quem disse isso?

Quando se encontraram os manuscritos de Qumran, em 1948, em cavernas na Palestina, descobriu-se muito da seita dos essênios. Um desses documentos, que traz a regra de conduta dos membros da seita, mandava odiar os inimigos. Muita gente afobada, sem preparo teológico algum, e má intencionada, diz que Jesus estudou com eles e era um deles. Provando que não era um deles, Jesus discorda do seu ensino. Ele não diz que Moisés ensinou isto ou que a lei trazia isto, mas que foi dito. Já deveria ter ouvido esta declaração anteriormente, e a recusa com veemência. O inimigo deve ser amado e deve ser objeto de intercessão (v. 44). É isto que nos torna filhos do Pai celestial (v. 45). Não são declarações pomposas, cheias de orgulho (“Sou filho de Deus!”). O verdadeiro filho de Deus não tem ódio no coração, mas ama a todos e ora por todos, mesmo os inimigos. Deus tem um tipo de graça, a graça universal ou geral, para com todos os homens. Ele faz nascer o sol e cair a chuva sobre todos, justos e pecadores, bons e maus, crentes e ateus (v. 45). Se Deus é bondoso para com todos, por que não seremos, se somos seus filhos?

Amar os que nos amam não significa nada. É bom para nós. Até os publicanos, considerados gente ruim e desonesta (não por Jesus, pois Mateus fora publicano), faziam isto (v. 46). . Ser amável com quem é amável conosco não é mérito algum. Os gentios, termo que designava pessoas desprezadas pelos judeus, faziam isto (v. 47). Novamente o ensino de Jesus: quem o segue deve ter uma conduta superior a das demais pessoas.

E UMA CONCLUSÃO DESAFIADORA

Jesus termina o texto que estudamos com esta declaração: “Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito vosso Pai celestial” (v. 48). Quem pode ser perfeito? Quem pode ser como Deus? Agora piorou!

A palavra traduzida por “perfeito” tem o sentido de completo, sem brechas, íntegro. Seria mais ou menos isto: “Sejam pessoas íntegras, completas, como é íntegro e completo vosso Pai celestial”. Há um nível de integridade e de “completude” para Deus. Há um nível de integridade e de “completude” para nós. Que alcancemos nosso nível. Não é para sermos como Deus, porque nunca seremos. É para lembrarmos que se somos filhos de Deus devemos ter o caráter dele.

Esta é a grande lição deste texto: devemos seguir os ensinos de nosso Pai celestial, e mostrar o seu caráter na nossa vida.  Um seguidor de Jesus é uma pessoa bondosa, que evita criar problemas e lutas, que procura viver bem com todos, e que exibe em sua vida as marcas do caráter divino. Devemos ser melhores que os sem Cristo, não por uma pretensa superioridade espiritual, mas para mostrarmos que ele vive em nós. O sermão do monte foi cumprido por Jesus em sua vida. E ele nos desafia a andar como ele andou (1Pe 2.21).

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