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Religião como enfeite

“Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles; de outra sorte não tereis recompensa junto de vosso Pai, que está nos céus” (Mateus 6.1)

Isaltino Gomes Coelho Filho

(Publicado originalmente na revista “Você”)

Há um site de humor que mostra atrizes famosas, maquiadas, bem vestidas, enfeitadas, e exibe outra foto delas, ao natural, sem produção alguma, como se diz. A diferença é tão grande que muitas vezes nem se reconhece quem é. A imagem da pessoa enfeitada é bem diferente da pessoa real.

Acontece isto muitas vezes na área religiosa. As pessoas se enfeitam e aparecem como não são. Quando vistas na vida real, não há semelhança entre as duas imagens, a produzida, e a natural. Há muita religiosidade artificial, apenas enfeite na vida da pessoa. Serve para exibir uma imagem bonita aos outros, mas no fundo, a pessoa não é aquilo. Às vezes, a pessoa real é até feia.

Por exemplo: no culto há quem seja bem exagerado nos cânticos, com gestos e balanço de corpo, de modo que todos vejam sua participação, mas sua vida fora da igreja não condiz com o que canta. Há também a bondade exibicionista, em que o bem é feito para a pessoa mostrar aos demais como é generosa. Mas, no fundo, a pessoa não se importa muito com os sofredores.

Jesus advertiu contra isto, como vemos no texto que inicia nosso estudo. O bem que fazemos não deve ser para nossa exaltação, mas por amor ao bem. Quem faz coisas boas para ser visto não recebe recompensa de Deus Pai. Fez por vaidade e não por amor. Este é o princípio básico na caridade: fazer o bem por amor e não por exibição. Fazer o bem por causa do necessitado e não para ser admirado pelas pessoas, ou como ensinam algumas religiões, para comprar a Deus. Praticar o bem pelo bem. A bondade não deve ser utilitária, mas desprendida.

QUANDO, POIS …

Por isso Jesus diz: “Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa” (Mt 6.2). As esmolas faziam parte da religião de Jesus, em sua época. Além de a pobreza ser grande, não havia amparo social para órfãos, viúvas, deficientes, etc. As esmolas eram uma prática religiosa que ajudava essas pessoas a sobreviverem. Mas não deviam ser feitas ao som de trombetas.

A linguagem é figurada. Uma trombeta soando chama a atenção. Tem som forte e estridente que logo é ouvido. Quem a ouve, sem esperar, logo procura saber o que ouve. Os hipócritas faziam assim nas sinagogas. Davam esmolas como ato religioso, na casa de Deus, mas querendo que os homens vissem. E faziam também nas ruas, para que os passantes os notassem. Tanto na sinagoga como na rua, num prédio ou em lugar aberto, faziam questão que todos vissem seu gesto. “Para serem glorificados pelos homens” mostra seu objetivo: receber louvor dos homens. Por isso, como diz o versículo 1, não terão recompensa de Deus. Já receberam o que queriam, o elogio dos homens. Esta é a questão: fazemos as coisas para Deus ou para os homens? Para a glória de Deus ou nossa glória pessoal? Nossa vida cristã é direcionada para Deus ou para as pessoas?

O PADRÃO – DISCRIÇÃO

“Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 5.3-4). A mão direita não saber o que a esquerda faz era um provérbio popular da época de Jesus para mostrar a discrição nos atos. Quem ajuda alguém deve ser discreto. Os atos de bondade do seguidor de Jesus devem ser discretos.

Sendo discreta, a bondade não aceita o soar de trombetas. A atitude do alarido é humilhante para quem recebe a esmola. Ao invés de ser algo discreto, é mostrado a todos. E a pessoa que recebe ajuda fica numa situação desfavorável. Todos a vêem como um desgraçado ou pobretão, um miserável. A prática do bem é para Deus, não para auto-elogio de quem pratica nem para humilhação de quem recebe.

O exibicionista não recebe recompensa de Deus porque já recebeu os elogios dos homens, mas neste caso, sucede o oposto. Os homens não vêem, mas como foi feito para Deus, ele recompensa. Deus sabe quando foi feito para os outros e quando foi feito para ele. Deus gosta do “secreto”, daquilo que é feito sem trombeta. Por isso é bom evitarmos a religiosidade exibicionista, de maquiagem e arrumação para aparecermos bem diante dos outros.

E, QUANDO ORARDES…

Mas Jesus continua: “E, quando orardes, não sejais como os hipócritas; pois gostam de orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”  (Mt 6.5-6).

De esmolas ele encaminha seu assunto para a oração. De atos para com as pessoas, passa para a atitude diante de Deus. Os hipócritas gostavam de orar em pé nas ruas, bem mesmo nos cruzamentos de ruas. Não eram ruas como as nossas, mas eram muito movimentadas porque eram estreitas e as pessoas passavam a pé. De repente, o exibicionista parava no meio do caminho, levantava os braços, e começava a orar para que todos vissem sua espiritualidade. De novo a questão do exibicionismo, mas agora em nível mais dramático. Para quem esta pessoa orava? Para os outros ou para Deus? Para quem oramos, para quem cantamos, para quem desempenhamos tarefas na igreja? Para as pessoas verem nossa capacidade e nossa espiritualidade ou para Deus? Para sermos exaltados ou para bom relacionamento com Deus?

Mais uma vez Jesus mostra que quem age para ser visto pelas pessoas já recebeu sua recompensa. Deve-se orar para Deus, no secreto do quarto, que ele verá e recompensará. O Mestre não está invalidando a oração pública, pois ele orou em público. Nem dizendo que não se deve orar em pé. A posição que assumimos na oração é irrelevante. Qual era a posição de Jonas, no ventre do peixe? O que Jesus censura é a religião como enfeite, como um adorno para nossa vida. Tanto na prática do bem, que é a dimensão horizontal da religião, como na oração, que é a dimensão vertical da religião, ele nos mostra que devemos ser discretos.

TEU PAI, QUE VÚ EM SECRETO

Duas vezes Jesus usou esta expressão (vv. 4 e 6). Assim ele ressaltou bem uma realidade: o nosso relacionamento com Deus não precisa ser trombeteado, mas deve ser diretamente voltado para ele. Isto não exclui os atos de cultos, a frequência à igreja, a comunhão com os irmãos. Mas nos lembra que Deus vê em secreto. Deus vê no íntimo. Disse bem Davi: “Eis que desejas que a verdade esteja no íntimo; faze-me, pois, conhecer a sabedoria no secreto da minha alma”  (Sl 51.6).

Deus deseja a verdade no íntimo. E nos conhece no íntimo. Ele sabe de nossas intenções. Jesus sabe quem somos, o que pensamos, o que está no nosso íntimo. Não é apenas o Pai que vê em secreto. O Filho conhece em secreto o que há dentro de nós: “E não necessitava de que alguém lhe desse testemunho do homem, pois bem sabia o que havia no homem” (Jo 2.25). Ele sabe de nossas intenções.

Por isso, preocupe-se em dar bom testemunho, em cultivar uma boa imagem junto às pessoas e em ter um procedimento correto diante delas. Mas não seja artificial nem hipócrita. Isto deve estar em seu coração, no seu íntimo. Não toque trombeta porque Deus não é surdo nem se ilude. Seja uma pessoa de fé, com bom relacionamento com Deus, e com boas ações, a partir de dentro. Não para se exibir às pessoas, mas como um ato de culto para com Deus.

CONCLUSÃO

O teólogo inglês John Stott cunhou uma expressão para designar o que ele considera uma doença da igreja contemporânea: “holofotite”. Segundo ele, é a ânsia que as pessoas têm em se colocar debaixo de holofotes para serem notadas e aplaudidas. Não seja assim conosco. Que os atos que mostram nossa fé sejam discretos. Que sejam vistos não para nosso engrandecimento, mas para a grandeza de Deus. Que ele brilhe, não nós.

Os reformadores usavam uma expressão latina, em seus escritos: Soli Deo gloria (“Para a glória de Deus”). Que seja um lema a reger nossos atos.

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