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A Trindade no Antigo Testamento

Luciano R. Peterlevitz

INTRODUÇÃO

Há um grande debate sobre a doutrina da Trindade no Antigo Testamento. Os Pais da Igreja afirmaram categoricamente que o Deus de Israel é Trino. Desconsideraram assim a revelação progressiva. Outros teólogos, em contrapartida, defendem que a doutrina da Trindade inexiste no contexto veterotestamentário. Existe também a afirmação de que embora no Antigo Testamento Deus seja Trino, ali a doutrina da Trindade não é manifesta de maneira tão clara. Assim, ensinar essa doutrina tendo por fundamento o Antigo Testamento é cristianizar por demais o texto.

É verdade que na antiga aliança não existe uma manifestação clara da Trindade. No entanto, podemos afirmar que a manifestação do Deus de Israel é plural. Muitos estudiosos até afirmam que essa pluralidade é apresentada porque originalmente o conceito de Deus surgiu num contexto politeísta. O pluralismo a respeito do divino apresenta-nos um resquício da crença politeísta1.  Mas prefiro acreditar que essa pluralidade está de acordo com a crença cristã na Trindade.

Começaremos nossa discussão com Deuteronômio 6.4. O foco inicial é a palavra hebraica ehad “um”, “único”. Analisaremos também outros textos, para afirmamos que, apesar de Deus no Antigo Testamento ser Um, ele é plural, o que favorece a doutrina cristã da Trindade nos textos veterotestamentários.

1. A UNICIDADE DE DEUS – DEUTERONÔMIO 6.4
Como conciliamos a fé num Deus único expressa no Antigo Testamento com a afirmação de que ele é o Deus Trino? Ora, antes de tudo, deve ser afirmado que a crença cristã na Trindade não é a crença em três deuses, mas a crença em três pessoas que participam da natureza divina de maneira plena e integral. Assim, mesmo em Dt 6.4, onde lemos a afirmativa que Deus é único, podemos identificar o Deus Trino. Vejamos:

Shemá Israel YHWH Eloheinu YHWH ehad.
“Javé nosso Deus Javé Um”

Atentemos-nos para a palavra “um´. Na língua hebraica existem duas palavras que expressam unidade:
1)
ehad “único”, “um”: “enfatiza a unidade, embora reconheça diversidade dentro da unidade“2.
2)
Yahid: também significa “único”, “um”, mas se refere a uma unidade simples (singular) ou absoluta.

A palavra usada em Dt 6.4 é ehad! Sobre isso, Stanley Rosenthal afirma:

A última palavra hebraica da Shema ´˜Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é único´ (Dt 6.4) é echad, que, embora traduzido por ´˜único´, é um substantivo coletivo, em outras palavras, um substantivo que, embora, denote unidade, a classifica, pois, representa uma unidade que contém várias unidades. Poderíamos
citar um bom número de exemplos. Em Números 13.23 lemos que os espias pararam em Escol onde ´˜cortaram um ramo de vide com um cacho de uvas´. A palavra hebraica que aqui aparece como ´˜um´, em ´˜um cacho´, novamente é echad; porque, como é evidente, esse único cacho de uvas consistia em
muitas uvas
3.

Portanto, a palavra ehad seria uma alusão ao Deus único, mas que contém em si a diversidade de pessoas4.

Vejamos ainda ouros usos da palavra ehad:

Gênesis 2.24: Portanto, o homem deixa o seu pai e a sua mãe, e deve decompor-vos a sua mulher: e eles serão uma (ehad) carne. (grifo do autor)

Úxodo 24.3: E Moisés chegou e disse ao povo todas as palavras do SENHOR, e todos os acórdãos: e todo o povo respondeu a uma (ehad) voz. (grifo do autor).

Veja que nesses dois textos ehad é uma unidade na diversidade: uma carne (duas pessoas); uma voz (de muitas pessoas).

A título de exemplo, a palavra hebraica yahid é usada nos seguintes textos:
Jeremias 6.26:
Ó filha do meu povo, cinge-te de saco, e revolve-te na cinza; pranteia como por um filho único (yahid), em pranto de grande amargura…(unidade simples).

Amós 8.10: …, e calva sobre toda cabeça; e farei que isso seja como o luto por um filho único (yahid), e seu fim como dia de amarguras…(unidade simples).

Provérbios 4.3: Quando eu era filho aos pés de meu pai, tenro e único (yahid) em estima diante de minha mãe…(unidade simples).

Gênesis 22.2: Prosseguiu Deus: Toma agora teu filho, o teu único (yahid) filho Isaque, a quem amas…(unidade simples).

É verdade que a palavra ehad também pode referir-se a uma unidade simples:

Deuteronômio 17.6: “Pela boca de duas testemunhas, ou três testemunhas, aquele que merece a morte deve ser posto à morte; mas pela boca de uma (ehad) testemunha, ele não deve ser posto à morte.”

Eclesiastes 4.8: “Há apenas um (ehad), sem uma companhia; sim, ele nem tem filho…”.

Vê-se, então, que a palavra ehad pode se referir a uma unidade coletiva e a uma unidade singular.
Mas e quanto a Dt 6.4? A palavra e
had significa unidade coletiva ou unidade singular? É verdade que o versículo enfatiza o fato de que há um só Deus, e “Israel deve a ele sua exclusiva lealdade (Dt 5;9; 6.5)”5. . No entanto, outros pontos precisam ser considerados, para a afirmativa de que a palavra ehad alude a uma unidade na diversidade. Comecemos com uma explicação do nome Elohim.

2. O NOME ELOHIM
Elohim é a palavra hebraica que normalmente é traduzida em nossas Bíblias como “Deus”, e em alguns casos como “deuses”. Em Gn 1.1,26 a palavra hebraica está no plural, bem como os pronomes que a acompanham. Isso leva a teologia cristã a afirmar que o texto faz referência à Trindade (veja também Is 6.8a).

Muitos especialistas, no entanto, pensam que o nome Elohim é um plural majestático, pelo qual se quer enfatizar a grandeza do Deus de Israel. O “plural sem dúvida é um aumentativo de exaltação, frisando a majestade de Deus, e não a ideia de pluralidade de pessoas“6.

Entretanto, pode-se averiguar que uma plenitude plural é encontrada no Antigo Testamento com referência a Deus, o que indica a doutrina da Trindade.

Antonio Neves Mesquita afirma que não havia o uso do plural majestático na antiguidade7.  “Assim, se Moisés dizia, desçamos, vejamos, façamos, e outras, era porque mais de uma pessoa estava sendo envolvida no ato. Não havia, podemos dizer, tal uso na antiguidade; tudo que se diz, nesse sentido, é pura invenção moderna“8. Esse mesmo estudioso diz que o pronome e o verbo no plural em Gn 1.27 indicam as três Pessoas da Trindade, pois está “de acordo com o teor geral da Bíblia de que as três pessoas da Santíssima Trindade tomaram parte na criação (Gn 1.2; João 1.1-5 e ref.)9.  Assim, “é mais provável que o significado seja de uma pluralidade de personalidade, visto que Deus e o Espírito de Deus aparecem em Gênesis 1”10.

Outros pensam que o termo Elohim é um superlativo. Sobre isso, afirma Botterweck: “Provavelmente o plural não significasse originalmente uma pluralidade, mas uma intensificação. Neste caso, ´˜elohim poderia significar ´˜grande´, ´˜o mais alto´, e finalmente, ´˜apenas´ Deus, isto é, Deus, em geral”11.

Além disso, outros estudiosos têm afirmado que uma das formas de se expressar o superlativo na língua hebraica é o uso do plural. Assim, para se dizer que El é fortíssimo (El significa ´˜forte´) usar-se-ia o plural Elohim (´˜fortes´). Essa seria a razão de o verbo estar no singular (“e disse“) e o sujeito no plural em Gn 1.26.

Mas cabe afirmar que a teologia cristã tem interpretado o plural em Gn 1.26 como uma referência à Trindade. Agostinho assim procedeu.12 Mas, muito antes de Agostinho, o apóstolo João já havia afirmado que o Logos estava com Deus antes da criação, e que por Ele foram criadas todas as coisas (Jo 1.1-3)!

Portanto, a Trindade é manifesta no Antigo Testamento pelo nome Elohim. Nas palavras de Walter A. Elwell, o “plural do nome de Deus (Elohim), bem como o uso dos pronomes (Gn 1.26; 11.7), e dos verbos (Gn 11.7; 35.7) no plural assim indicam.“13

Há, ainda, outras razões para pensarmos que o nome Elohim alude a uma manifestação plural de Deus no antigo Israel: a manifestação ´˜o Anjo´, da ´˜palavra´, e do ´˜Espírito´. Esses três são identificados com o próprio Deus.

3. O ANJO DO SENHOR
No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor é distinto de Deus, mas também é identificado com o próprio Deus. Ele aparece em Gn 16.7-13. As promessas feitas (v.10) claramente demonstram que o Anjo do Senhor não era um anjo qualquer. Em Gn 32.22-32 ´˜o Anjo´ aparece para Jacó, e assim se identifica: “Eu sou o Deus de Betel” (v.13). Assim, ele se identifica com o Deus que se manifestou em Betel (Gn 28.18-22). Em Gn 48.15-16 essa identificação é objetiva:

“O Deus em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes; seja neles chamado o meu nome e o nome de meus pais Abraão e Isaque; e cresçam em multidão no meio da terra.”

Outros textos poderiam ser citados (Úx 3.2, as esses bastam para a afirmação de que o “Anjo do Senhor” no Antigo Testamento é Deus. É uma pessoa distinta na divindade.

Muitos estudiosos afirmam que essa identificação do Anjo do Senhor com o próprio Senhor é uma interpolação tardia no texto bíblico, feita para evitar uma descrição do Deus de Israel excessivamente antropomórfica.

A meu ver, no entanto, o Anjo do Senhor é mais uma evidência de que a manifestação divina é plural. “Isso aponta para distinções pessoais dentro da Deidade.” 14

É curioso que as aparições do ´˜Anjo do Senhor´ terminaram após a encarnação de Cristo. Muita coincidência, não!? No Antigo Testamento, o Anjo do Senhor acompanhou Israel na caminhada pelo deserto (Úx 14.19; cf.23.20). O Novo Testamento diz que a Pedra que seguia Israel era Cristo (1Co 10.4).

4. A PALAVRA
Além do Anjo do Senhor, que no Antigo Testamento se apresenta como Deus, há outro elemento que contribui para pluralidade da manifestação do divino: a Palavra, participante da criação (Sl 33.6; 107.20).

No Sl 33.6 lemos:

Os céus por sua palavra se fizeram,
e, pelo sopro (ruah) de sua boca, o exército deles.

H. J. Kraus diz que a palavra criativa do Senhor traz à existência os céus e a terra. “Há uma correspondência intrínseca entre o Espírito de Deus e o fôlego da vida procedente da boca de Deus, e a palavra de Deus com o sopro de sua boca (Is 11.4)”.15

Mas a teologia cristã afirma que há muito mais do que uma correspondência entre Deus, o Espírito e a palavra. “A palavra não é simplesmente uma comunicação a respeito de Deus, nem o Espírito é um mero poder divino. São, pelo contrário, o próprio Deus em ação”.16

Mesquita afirma que os antigos rabinos acreditavam na divindade do Messias.17 Essa afirmação é feita a partir de uma interpretação do Sl 2.7 enquanto uma alusão ao Messias Filho de Deus, bem como a partir da identificação do Anjo do Senhor como sendo o próprio Senhor. Além disso, o fato de o Novo Testamento ser “escrito por judeus, é uma prova que eles acreditavam no Messias divino”, diz Mesquita.18 Oskar Skarsaune demonstrou veementemente que a cristologia doLogos Encarnado, encontrada em Jo 1.14, é oriundo não do mundo helênico, mas do mundo judaico.19 Isso significa afirmar que o judaísmo antigo interpretava a Palavra como mediadora da criação. Além disso, a crença judaica na Sabedoria como mediadora da criação nos textos apócrifos judaicos é tão parecida com a Trindade cristã, que quando os estudiosos procuraram um termo que explicasse seu papel ´” na relação com Deus único, e ao mesmo tempo externo a ele ´” “viram-se obrigados a recorrer à terminologia trinitária”.20

5. O ESPÍRITO SANTO
No Antigo Testamento lemos que o Espírito é Deus.
Vejamos Gn 1.2: “o Espírito pairava sobre a face as águas”. A palavra hebraica Espírito é
ruah, que significa ´˜vento´, espírito, ´˜Espírito´. Alguns comentaristas pensam que Gn 1.2 deveria ser traduzido como “e um vento de Deus pairava…”.
Mas outros textos bíblicos demonstram a participação do Espírito na criação (Is 63.10; Sl 33.6; Sl 104.30). Wilf Hildebrandt afirma que o “Salmo 33.6 é uma reflexão de Gn 1 e assevera que o evento da criação foi resultado da palavra falada de Deus trazida à realidade pelo seu
ruah“.21 Hildebrandt mostra que a frase ruah ´elohim (Espírito de Deus) “ocorre quinze vezes em hebraico e cinco vezes em aramaico. Ela nunca é traduzida como ´˜um vento poderoso´ ou ´˜um vento de Deus nestas ocorrências”.22 Conclui-se assim que em Gn 1.2 o ruah é o Espírito de Deus, que também é agente na criação.

CONCLUSÃO
Pudemos averiguar que a manifestação de Deus no Antigo Testamento é plural. Assim, sou levado a concluir que palavra ehad usada em Dt 6.4 alude a uma unidade na diversidade. Isso é evidenciado pelas seguintes idéias: o uso plural do nome de Deus; a associação do Anjo do Senhor e da Palavra Criadora com o próprio Deus; e o Espírito Criador. Mesmo que a palavra “Trindade” não apareça na Bíblia, o Deus do Antigo Testamento é Trino. A Trindade, portanto, é apresentada no Antigo Testamento, ainda que de forma incompleta.
Termino com as palavras de John Theodore Murller:

Não afirmamos que haja no Antigo Testamento a mesma clareza e evidência de testemunhos referentes à Trindade que há em o Novo Testamento; todavia asseveramos que tanto se podem como se devem citar do Antigo Testamento alguns testemunhos para exposição da doutrina da Trindade, visto que assim sempre se revelou desde o começo, a fim de que a Igreja de todos os tempos o pudesse conhecer, adorar e bendizer (…) como as três pessoas distintas numa só essência.


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Notas:

1 H. H. Rowley. A fé em Israel – Aspectos do pensamento do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003, p. 73.
2 Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 47.
3 Stanley Rosenthal. A Tri-unidade de Deus no Velho Testamento. Editora Fiel. O autor translitera a palavra hebraica como echad, que eu translitero por ehad.
4 Para uma discussão pormenorizada da ehad, vejahttp://apologiajudaica.blogspot.com/2008/03/palavra-echad-dentro-do-contexto-no.html. Acessado em 29.09.08.
5 Herbert Wolff, em LAIRD, Harris, (editor), Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 48.
6 R. N. Champlim. O Antigo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Candeia, 2000, p. 9.
7 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento. Rio de Janeiro: Dois Irmãos, 1956, p. 17.
8 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p. 18.
9 Antonio Neves de Mesquita. Estudos no livro de Gênesis, Rio de Janeiro: Juerp, 1979, p. 88.
10 Paul R. House. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005, p. 76-77.
11 Botterweck, citado por Isaltino Gomes Coelho Filho. O Pentateuco e sua contemporaneidade. Rio de Janeiro: Juerp, 2000, p. 30-31.
12 Agostinho. Cidade de Deus, VVI, VI.
13 Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 442-443.
14 Charles C. Ryrie. Teologia Básica ao alcance de todos. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p.60.
15 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p. 59.
16 Walter A. Elwell. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. Vol. 1, p. 443.
17 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p. 48.
18 Antonio Neves Mesquita. A doutrina da Trindade no Velho Testamento, p. 48.
19 Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 331-351.
20 Oskar Skarsaune. À sombra do Templo – As influências do judaísmo no cristianismo primitivo, p. 339, em nota de rodapé.
21 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2004, p. 35.
22 Wilf Hildebrandt. Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, p.51.
23 John Theodore Murller. Dogmática Cristã – Um manual sistemático dos ensinos bíblicos. Porto Alegre: Concórdia, 2004, p. 166.

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