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O LIVRO DOS SALMOS

MATÉRIA PREPARADA PARA A FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE CAMPINAS

Prof. Isaltino Gomes Coelho Filho

(É proibido o seu uso em salas de ensino, sem a autorização do autor. Por favor, respeite os direitos autorais).

O livro de Salmos está colocado bem no coração da nossa Bíblia. O Salmo 117 é o capítulo central e 118.8 é o versículo central.  Das 283 citações diretas do AT (há ainda mais 79 alusões) encontradas no NT, 116 ou 40% são dos Salmos.  Elas foram tiradas de 97 dos 150 Salmos (65%) e encontram-se em 23 dos 27 livros do NT.

O grande valor dos Salmos está no seu conteúdo, pois eles têm sido uma das maiores fontes de inspiração para a oração e adoração a Deus.  Eles percorrem todas as escalas da experiência do homem com Deus, desde a mais profunda depressão (Sl 42.5,6,9-11) até a mais exaltada êxtase de louvor (Sl 145.1-5).  Enquanto os livros históricos mostram Deus falando acerca do homem, e os livros proféticos mostram Deus falando ao homem, os Salmos mostram o homem falando a Deus, abrindo seu coração e louvando-o em todas as circunstâncias por causa da sua fidelidade e misericórdia.  Aqui temos poesia, teologia, hinologia, etc.

1. TÍTULO – Em hebraico “Sefer Tehillim” = “Livro dos Louvores”.  A LXX deu o nome “Salmos” (“Psalmoi”), que é a tradução do termo hebraico “Mizmor” = “canções cantadas com acompanhamento de instrumentos de cordas”, e é usado com 57 dos 150 Salmos.  O NT usa este título em quatro lugares – Lc 20.42; 24.44 At 1.20; 13.33.  Um outro título hebraico, “Tephiloth” = “Orações”, foi usado também, baseado em Sl 72.20 que indica que os Salmos de Davi foram orações.

2. DATAS DO ESCRITO DOS SALMOS – 1430-530 a.C.= 900 anos; maioria entre 1010-931 a.C.

1430 a.C. 1010 – 970 a.C. 970-931 a.C. 931-900 a.C. 586 a.C. 530 a.C.
Moisés

Sl 90 (+91)

Davi, Asafe, Hemã, Etã (1Cr 25.6) Autores Anônimos Salomão,

Sl 72, 127

Divisão do Reino

Filhos de Coré *

Exílio – Sl 137

Anônimo

Restauração – Sl 126 Anônimo

Observações: * – Os Filhos de Coré – Há várias possibilidades da identidade deles:

(1) Filhos de alguém chamado Coré na época de Davi, ou depois da divisão do reino.

(2) Uma sociedade de músicos, fundada ou presidida por Coré (1Cr 12.6; 1Cr 25.1,6,7; 2Cr 20.19)

(3) Os descendentes de Coré, que junto com 250 príncipes, se levantou contra Moisés e morreu (Nu 26.10,11; Jd 11).

(4) Os filhos dos porteiros do tabernáculo (1Cr 9.18,19; Sl 84.10)

3. TEMA – Expressões de oração e louvor a Deus, em toda a experiência humana.

4. OBJETIVO DOS SALMOS

(1) Expressões de alegria, tristeza, medo, confiança pessoais dos salmistas diante de Deus.

(2) Expressões de louvor, adoração e petições coletivas do povo de Deus.

(3) Expressões de anseio de Israel pela vinda do Messias.

(4) Expressões de música usadas nas cerimônias e cultos do templo, festividades religiosas.

5. AUTORES – A metade dos Salmos (73 Salmos + Sl 2, 10 e 95 = 76 dos 150 Salmos) é atribuída a Davi. Por isso que a coleção dos salmos é chamada muitas vezes os “Salmos de Davi”. Mas 12 outros autores foram identificados pelas legendas dos títulos dos Salmos e também pelos tradutores da Septuaginta.

6. TÍTULOS DOS CAPÍTULOS  – Surgem muitas perguntas a respeito dos títulos ou inscrições ou dedicatórias dos Salmos.  Quando, por quem, e por que foram adicionados?  O que significam?  Cuidado – Temos que diferenciar entre o título e o comentário dos editores.

7. TIPOS DE TÍTULOS –  (Há 116 títulos dos quais 100 indicam um autor; destes 100, 73 são da autoria de Davi.)

1) 34 SALMOS NÃO TÚM TÍTULOS – São eles:  1, 2,  10, 33, 43, 71, 91,  93, 94, 95, 96, 97, 99,  104, 105, 106, 107,  111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119,  135, 136, 137, 146, 147, 148, 149, 150.

2) 52 SALMOS TÚM TÍTULOS SIMPLES – Ex. “Salmo de Davi;”  “Salmo; um cântico de Asafe.” São eles: 11, 13, 14, 15, 17, 19, 20, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 35, 36, 37, 40, 41, 47, 48, 49, 50, 64, 65, 66,  68,  72, 73,  79,  82, 83,  85, 86, 87,  90, 98, 100, 101, 103, 108, 109, 110,  138, 139, 140, 141, 143, 144, 145.

3) 14 SALMOS TÚM TÍTULOS HISTÓRICOS – Estas inscrições explicam a raiz histórica relacionada com o Salmo e que resultou em sua composição.  Ex. “Salmo de Davi, quando fugia de Absalão, seu filho”.  São eles: 3, 7, 18, 30, 34,  51, 52,  54,  56, 57,  59, 60,  63, 142.

4) 4 SALMOS TÚM TÍTULOS DEDICATÓRIAS – Estas inscrições dedicam o Salmo a um dia ou ocasião especial.  Ex. “Salmo de Davi; para memorial”;  “Salmo; um cântico para o dia de sábado”.  São eles: 38, 70, 92, 102.

5) 15 SALMOS TÚM O TÍTULO “CÂNTICO DE DEGRAUS” – Estas inscrições se referem aos 15 degraus em frente do templo ou simplesmente à ascensão ou subida que os peregrinos fizeram quando foram às festas anuais no templo, sendo que Jerusalém é situado num altiplano rochoso e o templo no topo do Monte Moriá na cidade.  Assim são chamados “Cânticos de Romagem (Ascensão)”.  São eles: 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130 131, 132, 133, 134.

6) 31 SALMOS TÚM TÍTULOS ESPECIAIS –  Na realidade, 39 Salmos têm títulos especiais, mas 8 destes também têm títulos históricos e portanto já foram contados entre aqueles.  Estas inscrições são basicamente referências a instrumentos musicais, melodias hebraicas conhecidas naquela época, danças, etc.  Ex. “Ao regente do coro: para instrumentos de cordas (para o cantor-mor, sobre Neginote)”.  São eles: 4, 5, 6, 7, 8, 9, 12, 16, 22, 32, 39, 42, 44, 45, 46, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 67, 69, 74, 75, 76, 77, 78,  80, 81,  84,  88, 89,  142.

Observação – Os Salmos com o mesmo título que seguem uns aos outros foram sublinhados. É fácil notar que muitos foram agrupados quando foram colecionados e colocados no Livro dos Salmos.

8. DATA DE ACRÉSCIMO DOS TÍTULOS – Ninguém sabe com certeza; eis algumas conjeturas:

1) Antes da Septuaginta – Sem dúvida, os títulos existiram bem antes da tradução da Septuaginta feita cerca de 250 a.C., pois os tradutores da LXX incluíram os títulos, mas não tentaram traduzi-los.  Eles simplesmente adicionaram os títulos em hebraico (ex. Neghinoth, Mictam, Nehiloth, etc.) porque já na sua época, os significados em hebraico destes títulos tinham sido perdidos.

2) 430-400 a.C. – no tempo de Esdras – Há indicações que o escriba e sacerdote Esdras (veja Ed 7.6,10,21; Ne 8.1-6,9) fez uma revisão das Escrituras, no seu tempo, depois do exílio.  Pode ser que ele tenha adicionado os títulos.

3) Fizeram parte do texto original – Há muitos eruditos que acham que os títulos foram escritos pelos escritores dos Salmos, e que eles sempre existiam desde o início.  Os títulos foram colocados como sendo os primeiros versículos na Bíblia Hebraica.

9. DIVISÃO DOS TÍTULOS – Há dificuldades em entender o significado de muitos títulos, pois as palavras hebraicas com passar do tempo perderam seus sentidos.  A maior dificuldade existe em relacionar alguns títulos aos Salmos que os seguem, pois parecem não ter nenhuma ligação com o conteúdo do Salmo.  SEGREDO – no início deste século a chave que abriu este mistério foi achada.

1) Nos manuscritos hebraicos antigos, não havia nenhum espaço separando os Salmos.  Havia apenas um número na margem que indicava que um Salmo terminou e o seguinte começou.  Também, haviam estes títulos entre os Salmos que indicaram a divisão entre eles.  Sempre foi presumido que os títulos se referiam aos Salmos que os seguiam.  Porém, Dr. James W. Thirtle, ao examinar os Salmos, notou que muitos títulos, ou uma parte dos títulos, se relacionaram bem melhor com os Salmos que os antecederam.

2) Um estudo profundo levou ele e outros nos anos posteriores, a chegar à conclusão que muitos títulos devem ser divididos, com a primeira parte do título servindo como subscrição do Salmo anterior, e a segunda parte servindo como sobrescrito do Salmo seguinte.  A justificação para esta interpretação está na própria Bíblia:

a) “A Oração de Habacuque” em Hc 3.1-19;  a. Sobrescrito = v.1;  b. Oração = v.2-19a;    c. Subscrição =  v. 19b

b) “O Cântico de Ezequias” em Is 38.9-20;     a. Sobrescrito = v.9;  b. Cântico = v. 10-20a; c. Subscrição = v.20b

3) Esta confusão existia desde a Septuaginta.  Porque alguns são títulos aos Salmos que os seguem, supôs-se, equivocadamente,  que todos seguissem o mesmo padrão.

4) Muitos títulos devem ser divididos:

a. A 1ª parte do título = subscrição do Salmo anterior

b. A 2º parte do título = sobrescrito do Salmo seguinte

Exemplo – do título do Salmo 4:  “Ao regente do coro: para instrumentos de cordas” deve ser a subscrição do Sl 3;  “Salmo de Davi” é o sobrescrito do Salmo 4.

Exemplo – do título do Salmo 30: “Cântico para a ocasião da dedicação do Templo” deve ser a subscrição do Sl 29; “Salmo de Davi” é o sobrescrito do Salmo 30.

10. SIGNIFICADOS E POSICIONAMENTOS DOS TÍTULOS

PALAVRA SIGNIFICADO (provável ou possível) POSICIONAMENTO
Ajjeleth hashshahar “corça da manha”; talvez o título de alguma melodia hebraica fim do Sl 21
Alamot “cantoras virgens” fim do Sl 45
Al tachete “não destruas”; talvez uma melodia fim do Sl 56,57,58,74
Gitite “lagar”; refere ao fruto do outono, Festa dos Tabernáculos, preservação fim do Sl 7, 80,83
Jedútun “aquele que dá louvor”; o nome de um dos três diretores da música no templo; veja 1Cr 16.41,42; 1Cr 25.1-8; 2Cr 5.12 fim do Sl 38, 61,76
Jonate-elem recoquim “a pomba emudecida em terra longínqua”; Davi é a pomba fugindo de Absalão; talvez uma melodia hebraica fim do Sl 55
Machalath “a grande dança”; talvez alguma melodia fim do Sl 52
Machalath-Leanote “danças com gritos” fim do Sl 87
Maskil Salmo didático; instrução conhecimento início do Sl 32, 42, 44, 45, 52, 53, 54, 55, 74, 78, 88, 89, 142
Mictam “ignorada”; “gravada”; indicando ênfase e permanência; talvez um termo musical início do Sl 16, 56, 57, 58, 59, 60
Mutelabem “morte de um filho (campeão)”; refere-se à vitória de Davi sobre Golias (1Sm 17.4,23).  “Mute” = monte; “bem” = filho; “beym” = aquele entrando entre fim do Sl 8
Neginote; Nehiloth “instrumentos de corda” fim do Sl 3, 5, 53, 54, 60, 66, 75
Sheminith “oitava”; “baixo”; talvez o 8º grupo na procissão que trouxe a arca fim do Sl 5, 11
Shiggaion “cântico emocional em voz alta de alegria ou aflição” início do Sl 7
Shoshannim “lírios”; talvez alguma melodia; fala de flores, primavera, Festa da Páscoa,; libertação fim do Sl 44, 68
Shushan Eduth “lírios de testemunho; talvez uma melodia fim do Sl 59, 79

Nos 57 títulos  chamados “SALMO de DAVID, de ASAFE”, etc. (ex. Sl 3,4,76), a palavra “SALMO” é “MIZMOR”,  e significa “canção acompanhada com instrumentos de cordas”.  Nos 30 títulos escritos “CANÇÃO de ….”, (ex. Sl 46,120-134), a palavra hebraica é “SHIR” e significa “cânticos sem acompanhamento”.  Veja Sl 75 e 76 (os 2 termos).

11. “SELÁ” e “ALELUIA” – “SELÁ”, uma controvertida palavra que sempre se encontra no final de um versículo, com 4 exceções (Sl 55.19; 57.3; Hc 3.3; 3.9), é usada 125 vezes nos Salmos – 71 vezes no Livro 1, trinta vezes no Livro 2, vinte vezes no Livro 3, nenhuma vez no Livro 4, e quatro vezes no Livro 5.  Veja também Hc 3.3,9,13 (o Saltério Menor).  Em todos os Salmos onde ela ocorre, o título do Salmo menciona uma espécie de melodia.  Assim, “selá” deve ter sido um sinal musical ou litúrgico.  Veja Sl 9.16 onde se encontra a expressão “Higaiom Selá”, significando algum intervalo, entreato musical.

Veja exemplos em Sl 3.2,4,8; 4.2,4; 46.3,7,11; 47.4; 48.8.  Alguns acham que as consoantes da palavra “selá” são um acróstico que significa “mudança de vozes” ou “repetir desde o início”.

“ALELUIA” = Uma transliteração de duas palavras hebraicas “hallel” (louvar) e “Yah” (forma abreviada de “Yahweh”).  “Aleluia” significa “Louvai ao Senhor” e é usada cerca de 24 vezes nos Salmos, além de várias vezes em Crônicas, em Jz 5.2; em Jr 20.13; e quatro vezes em Apocalipse (Ap 19.1,3,4,6), o único lugar no NT.  Três grupos de Salmos são conhecidos como os “Salmos de Aleluia”.

a. Salmos 111-113 = Cada um começa com “Aleluia” (“Louvai ao Senhor” em algumas Bíblias).

b. Salmos 115-117 = Cada um conclui com “Aleluia” e Sl 117 também se inicia com “Aleluia”.

c. Salmos 146-150 = Todos começam e terminam com “Aleluia” (com exceção do término de 147, que é dividido em duas partes pela LXX (vv. 1-11 e vv. 12-20).

Se a última linha do Sl 104 é realmente a primeira linha do Sl 105, como parece que deveria ser, então os Salmos 105 e 106 também começam e terminam com “Aleluia”.

A palavra “aleluia” não é encontrada em nenhum Salmo de Davi.  Talvez seja uma expressão litúrgica para uso antifônico, em resposta à qual a congregação repete o 1º versículo depois de cada versículo consecutivo enunciado pelo dirigente.  Requer adoração em harmonia com louvor ao Senhor.

Os Salmos 113-118 – o Hallel Egípcio – foram cantados na Festa da Páscoa.  Portanto, o “hino” cantado por Jesus e seus discípulos na noite em que Ele foi traído (Mt 26.30), sem dúvida foi um destes ou todos estes Salmos.  Os Salmos 120-134, conhecidos como os “cânticos de degraus” ou “cânticos de romagem” ou “cânticos de ascensão” fizeram parte do Grande Hallel, os Salmos 120 a 136.

12. CLASSIFICAÇÃO DOS SALMOS – Há muitas maneiras de classificar os Salmos, e além disto, muitos Salmos se encaixam em mais do que uma categoria.  Segue-se uma divisão em oito categorias.

(1). ADORAÇÃO – Tratam do prazer em estar com Deus, na sua casa; exultam o culto.  Exemplos – Sl 24, 84, 100, 116, 122.

(2) LOUVOR – Exaltam a pessoa de Deus, louvam o seu nome e caráter.  Mostram relacionamento adequado com Ele.  Exemplos – Sl 29, 87, 103, 107, 114, 136, 150.

(3) SEGURANÇA – Mostram a proteção de Deus aos seus, o Seu cuidado na provação e como o fiel nunca está desamparado.  Exemplos – Sl 3, 4, 11, 16, 20, 23, 27, 31, 36, 46, 52, 57, 62, 63, 85, 91, 108, 121, 125, 126.

(4)  PENITENCIAIS – Tratam do pecado, da confissão, e da graça perdoadora de Deus.  Exemplos – Sl 6, 32, 38, 51, 102, 130, 143.

(5) MESSIÂNICOS – Referem-se ao messias, seu reino, sua pessoa, seu sofrimento.  Exemplos – Como Rei: 2, 45, 72, 110;  Como Sofredor: 22, 31, 69.

(6) IMPRECATÓRIOS – Trazem expressões de maldições, de ódio, de vingança.  Exemplos – Sl 35.8,9; 58, 69, 83, 109, 137.8,9.  (Estes Salmos são difíceis de explicar à luz de Mt 5.44; Rm 12.19-21; Pv 24.29; 25.21,22).

(7) SABEDORIA/DIDÁTICOS – Ensinam a sabedoria prática.  Exemplos – Sl 1, 37, 49, 73, 91, 112, 119, 133, 139.

(8) LAMENTO INDIVIDUAL/NACIONAL – Mostram queixas frente a tristeza, aflição por causa de calamidades nacionais, ameaças pessoais, acusações injustas, etc.  Exemplos – 5, 7, 12, 13, 17, 22, 44, 58, 63, 64, 90, 94, 108, 126, 137, 140;

13. NUMERAÇÃO DOS SALMOS – A maioria das versões modernas do Velho Testamento usadas pelos evangélicos são traduzidas do TM – Texto Massorético – escrito em hebraico, compilado e padronizado pelos rabinos massoretas, e baseado no texto aceito pelo Concílio de Jamnia, cerca de 100 d.C.  O texto hebraico original tinha só consoantes.  Os Massoretas, vivendo entre 500 e 1.000 d.C., evoluíram um sistema de vogais e escreveram anotações críticas para facilitar e resguardar a pronúncia tradicional e a transmissão fiel do texto hebraico.  Exemplo: As consoantes YHWH foram intercaladas com as vogais de Adonai e Elohim para formar YaHWeH (Javé ou Iavé).  Este nome foi considerado tão sagrado que, na base de Úx 20.7 (o 3º mandamento), ele sempre foi substituído pelo nome ADON ou ADONAI,  quando lido.

Um bom número das versões católicas, porém, se baseia na Vulgata, a tradução latina de Jerônimo (350-420 d.C.), que o Concílio de Trento, na Sessão IV, no dia 8 de abril de 1546 (após a Reforma) decretou a única versão autêntica e autorizada pela Igreja Católica Apostólica Romana, de todas as versões latinas.  Jerônimo fez sua tradução na base da Septuaginta (LXX), com referências ao hebraico e a Hexapla de Orígenes.  Mais tarde ele fez uma revisão usando o hebraico, mas as influências da LXX continuaram.  A Vulgata, que sofreu muitas revisões em 1592 e 1598, como a LXX, inclui certos livros apócrifos no AT, e tem uma ordem diferente de alguns livros e capítulos.  Por isso há uma diferença na numeração dos capítulos e versículos dos Salmos entre muitas Bíblias Católicas e as Bíblias Protestantes.

(1) O Texto Massorético contém 150 Salmos, e numera os títulos como o primeiro versículo do Salmo.  Portanto o número dos versículos na Bíblia Hebraica é geralmente um a mais do que em nossas Bíblias, que separam os títulos sem numeração.  Salmos 18, 51 e alguns outros têm títulos tão compridos que eles constam como dois versículos na Bíblia Hebraica.

(2) O Talmude (Sábado 16) contém 147 Salmos (um para cada ano da vida do patriarca Jacó – Gn 47.28); O Talmude (Berachote 9b) descreve os Salmos 1 e 2 como uma única composição.

(3) A Septuaginta contém 151 Salmos, um a mais do que as nossas Bíblias.  A versão do Salmo 151 em hebraico foi descoberta na caverna número 11 de Qumrã em 1947.  Na LXX:

a. Sl 9 e 10 constam como um Salmo só (Sl 10 continua o padrão acróstico do Sl 9).

b. Sl 114 e 115 constam como um Salmo só.

c. Sl 116 é dividido em dois Salmos separados.

d. Sl 147 é dividido em dois Salmos separados.

e. Sl 151 é acrescentado; um Salmo de sete versículos que tratam da vitória de Davi sobre Golias.

(4) A Vulgata segue a numeração da LXX e portanto muitas traduções católicas modernas fazem o mesmo.  Por exemplo, na tradução muito usada no Brasil do Padre Matos Soares:

Salmo 1 é igual ao nosso.

Salmo 2 divide nosso versículo 12 em versículos 12 e 13.

Salmo 3 coloca o título como o 1º versículo e contém 9 versículos. em total.

Salmo 4 coloca o título como o 1º versículo e divide nosso versículo  8 em versículos 9 e 10.

Salmo 9 coloca o título como o 1º versículo e portanto tem um total de 21 versículos.

Salmo 10 tem 18 versículos como em nossa Bíblia, mas acrescenta um segundo Salmo 10, que é nosso Salmo 11 em conteúdo.

Daí em diante os Salmos da tradução do Pe. Matos Soares sempre estão um atrás da nossa tradução, até o Salmo 113 (que é nosso Salmo 114).  Na tradução do Pe. Matos Soares, há dois Salmos 113 (Salmo 113A (vv.1-8), que corresponde ao nosso Salmo 114, e Salmo 113B (vss.1-18) que corresponde ao nosso Sl 115).  Porém, chegando ao final dos Salmos, o Salmo 146.1-11 e o Salmo 147.12-10 do Pe Soares correspondem ao nosso Sl 147.  Assim Salmos 148, 149, e 150 correspondem aos mesmos Salmos em nossas Bíblias.

14. A BASE UGARÍTICA

A evidência mais significativa a respeito da antiguidade do gênero literário dos Salmos acha-se nas poesias dos “Tabletes de Ras Shamra” descobertos pelos arqueólogos na antiga cidade de Ugarite, uma cidade da Fenícia no norte de Canaã, na época em que Israel saiu do Egito e conquistou a terra prometida.  Há tantos paralelos e semelhanças marcantes na fraseologia poética e na estrutura dos versos entre a poesia ugarítica e a poesia hebraica, que não resta dúvida que os hebreus adotaram o estilo poético que eles já encontraram em estado altamente desenvolvido entre os povos cananeus por eles conquistados.  Portanto, os Salmos não podem ser relegados simplesmente à época exílica ou pós-exílica.  Moisés e outros da sua época tinham conhecimento do estilo de paralelismo, etc., tão característico da poesia hebraica (Úx 15.1-18; Jz 5.1-32).  Veja também a literatura poética das profecias pré-exílicas (Os 6.1-3; Is 2.2-4; Is 38.10-20; Jr 14.7-9; Hc 3.1-19).

15. A TEOLOGIA DO SALTÉRIO

Apesar de serem escritos para comover e atingir o coração, as emoções, e não de convencer e apelar à mente, o intelecto, os Salmos contém muitos ensinos e conceitos teológicos.  O mais destacado é o conceito de Deus nos Salmos.

Uma das melhores maneiras de estudar os Salmos é de verificar como o Salmista pensa e se endereça a Deus nas várias situações de tribulação, de angústia, de alegria, etc., em que ele se encontra.  Segue-se uma lista de alguns dos atributos de Deus que se repetem muitas vezes nos Salmos:

1. Majestade na criação (Salmo 135)                            5. Juiz da humanidade* (Salmos 96, 98)

2. Onipotência, Onisciência, Onipresença (Salmo 139)   6. Guarda e vindicador dos oprimidos

3. Senhor da história humana                                        7. Justo, reto, santo

4. Rei, Governador, Legislador                                      8. Misericordioso, compassivo, fiel, pessoal

O Livro dos Salmos pode ser dividido em duas partes na base do nome hebraico de Deus contido nos Salmos.  Os Salmos 1 a 41 (Livro 1) e Salmos 84 a 150 (Livros 4 e 5) são SALMOS IAHVEÍSTICOS, porque o nome de Deus usado quase exclusivamente nestes Salmos é “Iahweh” (YHWH, Javé, Iavé).  Os Salmos 42 a 83 (Livros 2 e 3) são SALMOS ELOÍSTICOS, pois o nome muito usado no hebraico é “El” (Eloah, Elohim).

* O AT não ensina claramente a natureza do julgamento futuro e a vida futura dos ímpios e dos santos.  O conceito dos judeus da vida eterna era mais na ordem de uma sobrevivência por intermédio de uma posteridade feliz.  Não existem muitas referências explícitas a respeito à ressurreição; Jó 19.25,26 é uma exceção.  Esta é mais uma razão dos Salmos Imprecatórios pedindo julgamento e justiça agora, pois o conceito dos Salmistas sobre o futuro era nebuloso (Jó 7.7-10; Sl 6.5; 146.4; Ec 3.19-22; Ec 9.2,5,10).  Há uma revelação progressiva na Bíblia, não em termos de verdades ou meias verdades; isto é, qualidade de revelação, mas em termos de quantidade de verdades reveladas.

16. A IMPORTÂNCIA DO SALTÉRIO PARA JESUS

Na época de Jesus, o livro de oração e o hinário usados na sinagoga era o Livro dos Salmos.  Assim Jesus conhecia intimamente os Salmos.  Jesus citou os Salmos muito no seu ensinamento – exemplos = Mt 21.16 citando Sl. 8.2; Mt. 21.42 citando Sl 118.22; Mt 23.39 citando Sl 118.26; Jo 10.34 citando Sl 82.6; etc.  Veja Lc 24.27,44 sobre a exposição que Jesus fez no livro dos Salmos sobre si mesmo.  Jesus cantou uma parte do Halel (Sl 113-118)[1] com seus discípulos no final da celebração da última páscoa, a primeira santa ceia (Mt 26.30).  Jesus morreu com as palavras de Sl 22.1 na sua boca.  (Não havia crucificação naquela época, mas veja os detalhes em  Sl 22.6-8,14-18). O relacionamento de Jesus com os salmos foi tão grande que Agostinho se referiu a ele como “esse admirável cantor de Salmos”. E a igreja primitiva associou Jesus com Davi e não com o servo sofredor de Isaías. Ela foi buscar pistas de Jesus, no Antigo Testamento, no livro de Salmos. [2]

17. CÂNTICOS DE DEGRAUS (OS GRAUS) – (Cânticos de Ascensão ou de Romagem) – Os 15 Salmos incluindo Salmos 120 a 134.   Qual o significado deste título?

(1) Uma tradição judaica, tirada da Mishna, indica que estes Salmos foram chamados “Cânticos de Degraus” porque foram cantados, na ordem em que os temos na Bíblia, nos 15 degraus do templo que subiram do Pátio das Mulheres para o Pátio de Israel.  Porém, nada na Bíblia comprova que existiam exatamente 15 degraus.

(2) Lutero pensou que o título significava “hinos do coro mais alto.” (posição nos estrados ou nos degraus)

(3) Calvino interpretou o título como “hinos cantados numa tonalidade mais alta”.

(4) Alguns acham que o título significa que os hinos foram cantados quando Davi e o povo levaram a arca a Jerusalém (2Sm 6.5,12,15; 1Cr 13.6-8; 15.14; 2Cr 5.5 = “fizeram subir a arca”).

(5) Alguns acham que o título se refere aos hinos cantados pelo povo quando subia a Jerusalém para as grandes Festas – Páscoa, Pentecostes, Tabernáculos (Is 30.29).  O Salmo 121 foi cantado quando viram o Monte Sião, na última noite.

(6) Outros acham que os Salmos são pós-exílicos e, portanto, refletem os hinos cantados pelos judeus voltando a Jerusalém após dos 70 anos de cativeiro em Babilônia.

(7) Uma nova explicação surgida nos últimos tempos, está ligada ao título correto em hebraico.  A palavra hebraica usada 45 vezes no AT é MAALAH, que pode significar “subindo, ascensão, graus, degraus”.  26 vezes ela é interpretada pela palavra “graus” (ex. 2Rs 20.9-11; Is 38.8); 17 vezes ela é interpretada como “degraus” (ex. 1Rs 10.19; Ne 3.15; Ez 40.6).  O título literalmente deve ler “Um Cântico De Os Graus (Maalah)”.  Quais graus?  Os graus no grande relógio de sol de Acaz.  Como outros daquela época, o prédio sustentando o relógio solar era um edifício imponente, com dezenas de degraus subindo numa escada a uma altura considerável onde a sombra do ponteiro marcado cada grau podia ser visto.  Foi neste relógio solar que a sombra voltou 10 graus como sinal que Deus ia prolongar a vida do rei Ezequias por 15 anos (2Rs 20.8-11).

Mas quais são as provas que Ezequias tinha capacidade de escrever estes “Cânticos de os Graus”? Pelo menos cinco podemos considerar:

1.  Ezequias se mostrou o rei mais santo de todos os reis de Judá (2Rs 18.5-7).

2.  Ezequias purificou o templo e restaurou seu culto (2Cr 29.1-5) com uma grande ênfase sobre a música (2Cr 29.25,27,30).

3. Ezequias organizou o livro dos Provérbios (Pr 25.1) e provavelmente mexeu também no livro dos Salmos.

4. Ezequias escreveu cânticos (Salmos) como aquele registrado em Is 38.8-20.  Notem que no hebraico, o v. 20 inclui as palavras “com meus cânticos” depois da palavra “louvaremos”.  Esta pode bem ser uma referência aos 15 cânticos dos Salmos 120 a 134.

5. Há 15 Salmos de “Cânticos de os Graus”; a Ezequias foram acrescentados 15 anos.  O sol voltou 10 graus no relógio solar; 10 dos “Cânticos de os Graus” são escritos por um autor anônimo, 4 são de Davi, e um é de Salomão.  Estes 15 Salmos foram propositalmente organizados em 5 grupos de 3 Salmos cada (foi em 3 dias que Ezequias se levantou da cama de morte).  Em cada grupo, dois são de um autor anônimo e um de um autor conhecido.  O primeiro de cada grupo trata de dificuldades; o segundo de cada grupo trata de confiança; o terceiro trata de triunfo.

Será que o autor anônimo não  foi Ezequias, que humildemente não colocou seu nome, mas escreveu um cântico para cada grau em que a sombra voltou para trás, e depois adicionou mais 5 Salmos já escritos e conhecidos para fazer o total dos 15 anos que foram acrescentados a ele, colocando 2 cânticos dele junto com um de Davi ou Salomão em cada dos 5 grupos?

18. OS SALMOS MESSIÂNICOS

Os salmos mais reconhecidamente messiânicos são: 2, 8, 16, 22,  24, 40, 41, 45, 68, 69, 72, 87, 89, 102, 110, 118 (os principais estão sublinhados). Uma análise global deles nos mostra que eles enfatizam três temas messiânicos que são encontrados na teologia do Novo Testamento, em seu aspecto cristológico:

1) A humilhação e exaltação do Messias.

2) As tristezas presentes e o livramento  futuro de Israel.

3) As bênçãos futuras de todas as nações através do Messias reinante de Israel.

Estes temas foram bem assimilados na teologia do Novo Testamento, como mencionei anteriormente. Paulo tratou do primeiro em Filipenses 2.9-11, no texto clássico do esvaziamento de Jesus e o recebimento de um nome sobre todo o nome. Paulo não criou esta idéia baseando-se nos Salmos. Jesus havia falado de sua rejeição e de sua morte, mas também de sua ressurreição e segunda vinda. A comunidade cristã primitiva subsidiou as informações de Jesus sobre si mesmo com estas declarações dos Salmos e assim os interpretou. Vemos aqui o que foi dito na primeira palestra: o Novo Testamento interpreta o Antigo e o Antigo subsidia o Novo. Assim, Salmos foi tornado mais claro no Novo Testamento. Ao mesmo tempo, deu base teológica para o Novo Testamento.

As tristezas presentes e o livramento futuro de Israel foram abordados por Paulo em Romanos, do capítulo 9 ao 11. A questão foi descobrir como a comunidade anterior, a da antiga aliança, tema que estudamos na primeira palestra, teria seu espaço dentro do propósito de Deus. Crendo que Israel, mais uma vez, rejeitara a seu Senhor, e agora de maneira mais drástica com a morte de Jesus, os cristãos foram se perguntar: “e o futuro de Israel?”. Esta questão lhes era relevante até mesmo porque a maior parte deles se compunha, na época, de pessoas vindas da fé judaica.

As bênçãos para o mundo através do Messias foram a compreensão que a comunidade cristã primitiva teve de que o Messias não era apenas o Salvador dos judeus, mas do mundo inteiro. Não deixa de ser irônico que sendo tão exclusivistas a ponte de comporem uma canção pedindo que seus inimigos tivessem os filhos jogados nas pedras, os judeus tivessem alguns de seus cânticos trazendo bênçãos para seus inimigos. A comunidade cristã primitiva foi orientada pelo Espírito para ler nos Salmos o que Israel não conseguiu ler.

Quais aspectos da vida de Jesus os salmos messiânicos conseguiram contemplar? Alisto, a seguir, alguns deles. Não creio que tenha esgotado a lista, mas estes me parecem os mais notáveis. Vale a pena ver não apenas os tópicos, mas as passagens, e entender seu sentido.

1) Jesus é mostrado como sendo o Filho de Deus – Sl 2.7; 45.6-7; 102.25-27.

2) Jesus é mostrado como sendo o Filho do Homem – Sl 8.4-6, etc. Se no tópico anterior sua divindade é realçada, neste, sua humanidade é afirmada.                                .

3) Jesus é mostrado como sendo Filho de Davi – Sl 89.3-4,27,29. Basicamente, todo rei de Jerusalém era filho de Davi. Mas se o davidismo, que já mencionei anteriormente, estava em curso, a aplicação seria bem restritiva, ignorando-se o rei de Jerusalém, e projetando-se para uma figura por vir.

4) Jesus é mostrado como sendo Profeta ou o Arauto que apresenta os irmãos diante do Senhor – Sl 22.22, 25 e 40.9-10. Profeta, aqui, não é o pregoeiro de juízo, mas o arauto, que se chega diante do Rei Eterno e apresenta os irmãos menores, que somos nós.

5) Jesus é mostrado como sendo Rei – Sl 2; Sl 24; etc. O Salmo 24 parece ter sido composto para a entronização da arca em Jerusalém. Isto o tornaria altamente messiânico, pois a arca era um símbolo da presença de Deus com seu povo, como Jesus é a presença divina conosco.

6) Jesus é mostrado como sendo Divino – Sl 45.6-7; 102.25-27, texto que deve ser cotejado com Hebreus 1.8-14. Aliás, o autor de Hebreus vai se valer muito da idéia de Melquisedeque como um tipo de Jesus. Vai se abeberar nos Salmos, mais que em Gênesis.

APÚNDICE A “SALMOS MESSIÂNICOS”

Para completar o tópico “Salmos messiânicos”, acrescento uma palestra que preparei e apresentei em uma semana de estudos teológicos, na PIB de Nova Odessa, SP. Ela completa o item 18. A seguir, entramos no item 19, que trata dos salmos imprecatórios.

O MESSIAS NOS SALMOS

Primeira de quatro palestras preparadas pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, para a PIB de Nova Odessa, 3 de julho de 2002

“Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora”, disse Jesus aos seus discípulos (Jo 16.12). Jesus não conseguiu colocar tudo o que tinha para ensinar, na cabeça dos discípulos. O Espírito Santo viria completar seu ensino, como ele mesmo declarou: “Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora. Quando vier, porém, aquele, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas vindouras”. O ensino de Jesus seria completado pelo Espírito. O Messias não conseguiu se fazer entender por completo. As Escrituras, produto final do Espírito Santo, fariam isto. E as Escrituras do Novo Testamento surgiram, em boa parte, como necessidade da comunidade cristã primitiva em entender o Antigo Testamento no que ele dizia sobre o Messias.  Como veremos, depois, o livro de Salmos foi bastante explorado neste sentido.

Isto faz sentido. O fenômeno Jesus foi tão desnorteador que os discípulos não conseguiram entender tudo. Criados num rígido monoteísmo, na idéia da unicidade de Deus, os discípulos, de repente, tiveram a informação de que Deus era mais que uma pessoa. Era mais que Espírito. Era matéria, também. A noção de que Deus se fez homem na pessoa de Jesus pode nos parecer mais tranquila, hoje, mas naquela época foi algo muito difícil de se aceitar. Afinal, no terceiro século do cristianismo ainda havia discussões teológicas para definir doutrinas sobre a pessoa de Jesus. Imaginemos os apóstolos, então.

A comunidade cristã primitiva teve que se explicar e teve que explicar o que acontecera com ela. Nota-se que os primeiros cristãos não estavam querendo sair do judaísmo. Eles se consideravam como judeus e ainda não tinham enxergado o alcance de sua missão e o de sua própria existência. Eles se viam como mais uma das muitas seitas judaicas e tentaram harmonizar sua situação com o judaísmo até o momento narrado em Atos 15. Em Atos 5.17, os saduceus são vistos como uma seita judaica. Em Atos 15.5, os fariseus é que são assim chamados.  Em Atos 24.14, o cristianismo é chamado “caminho” e tido como seita judaica. Paulo também o chama assim, em Atos 22.4. O nome se confirma em Atos 28.22, na boca dos judeus que moravam em Roma. O próprio Lucas o chama assim, em Atos 24.22. Eles tiveram que reinterpretar o judaísmo e as Escrituras do Antigo Testamento.

Nesta busca de se explicar e se justificar, a comunidade cristã primitiva se debruçou com seriedade e com a inspiração divina, no estudo do Antigo Testamento. Quando analisamos os sermões de Pedro, no dia de Pentecostes (At 2)  e no sinédrio (At 4) vemos que eles estão cheios de alusões ao Antigo Testamento. Chama a atenção o fato de que muitas destas passagens são do livro de Salmos.  A comunidade cristã primitiva descobriu que este era o livro mais adequado para se centrar na sua pregação e no exame do fenômeno Jesus. É curioso que textos que nos são tão preciosos, como Isaías 53 não são tão explorados como Salmos. Por quê?

POR QUE SALMOS?

A resposta é muito simples. O livro de Salmos trata dos anseios humanos. Eles, os salmos, nos falam de  sentimentos pessoais de frustração, de dor, de medo, de pedido de vingança. Falam da dependência de Deus, dos sonhos, das orações por justiça, por intervenção divina.  Mas também nos falam dos sentimentos coletivos. A nação pede ajuda quando está assolada por crise econômica motivada por seca ou por alguma praga de gafanhotos. Pede ajuda quando experimenta medo diante de um inimigo militarmente mais poderoso. Pede perdão quando experimenta o juízo divino. Espera socorro divino. Projeta sua confiança para um libertador ou um salvador. Tudo isto é material para dar substância a um Messias.

Os Salmos trazem também as expectativas espirituais dos judeus. Sendo poesia, eles eram o melhor veículo para que os fiéis expressassem suas perspectivas espirituais. O anseio pelo Messias não poderia ter melhor espaço que as canções e hinos entoados nos cultos, ao redor das fogueiras no campo, ou nas marchas pelo deserto. Os judeus veneravam suas Escrituras e faziam uso dela não apenas no templo e nas sinagogas, mas em todas as áreas da vida.  Como o livro de Salmos é o maior livro do Antigo Testamento, consequentemente teria que ser o mais citado pelos judeus, em seu uso das Escrituras. Aliás, é o livro do Antigo mais citado no Novo Testamento. A incidência do uso de Salmos em profecias acabaria sendo até mesmo uma simples questão matemática. Mas, o fato de serem expressões práticas de fé, os tornaram recomendáveis para subsidiar a figura do Messias.

Há um outro aspecto que deve ser considerado. Muitos dos salmos foram compostos para cânticos nacionais associados com a figura do rei de Jerusalém. Quando da entronização de um novo rei, por exemplo. A rebelião dos reis contra um deles produziu o Salmo 2, que da mesma maneira foi identificado como sendo um salmo messiânico. Era prefigurava o que aconteceria no futuro. É fácil de se entender isto. O rei de Jerusalém era da dinastia de Davi. Todos os reis de Judá eram descendentes de Davi.  Por mais desqualificado que fosse qualquer um deles, do ponto de vista espiritual, era um antecessor do Grande Rei, do Novo Davi, do Messias vindouro. Estes cânticos celebrando um momento específico na vida do rei de Jerusalém foram transpostos para a figura do Messias, Jesus Cristo, vendo a comunidade cristã primitiva neles um anúncio de algum aspecto da vida do Salvador. Até mesmo as crises pessoais do rei de Jerusalém acabaram prefigurando crises pessoais do Messias. Isto explica porque o livro de Salmos se tornou a maior base para se elaborar explicações sobre a pessoa de Jesus por parte da comunidade cristã  primitiva. Ele antecipou momentos da vida de Jesus.

O próprio Jesus reconheceu que os Salmos falavam dele, como vemos em Lucas 24.25-27, 32, 44-46.  Ele entendeu que havia neles um testemunho a seu respeito. Particularmente na conversa com os caminhantes de Emaús ele deixou isto bem claro.

19. OS SALMOS IMPRECATÓRIOS –  Os principais salmos imprecatórios são: 35.8,9;  58.6,10;  59.13;  69.27,28;  83; 109.8-10,12-13;  137.8,9.  Vinte uma imprecações menores se encontram em: Sl 5.10; 6.10; 28.4; 31.17,18; 40.14,15; 41.10; 55.9,15; 70.2,3; 71.13; 79.6,12; 129.5-8; 139.19-22; 140.9,10; 141.10; 149.7-9.  O que faremos com estas expressões à luz dos ensinamentos de Jesus que devemos amar os nossos inimigos (Mt 5.38-48) e na luz dos ensinamentos de Paulo que não devemo-nos vingar (Rm 12.19-21; 13.8-10; Pr 25.21,22; Lv 19.18)?

As objeções a eles são geralmente baseadas em  quatro argumentos:

1) Eles ferem os sentimentos humanos de compaixão e misericórdia (Gl 5.22;  Lc 10.33; Cl 3.12; Ef 4.32).

2) Eles ferem o fato que Deus manda chuva e sol sobre os justos e injustos igualmente, trazendo bem até para os piores dos homens (Mt 5.45; At 14.17).

3) Eles estão completamente contrários ao ensinamento e espírito do Novo Testamento (Rm 12.19-21; 1Pe 3.8,9).

4) Eles são incoerentes com a profissão de ardente confiança em Deus do próprio Salmista (Sl 27.1-3).

Para estas objeções, há algumas explicações:

1) Revelação Progressiva – quantidade das revelações, não qualidade; não do erro para a verdade, mas do parcial para o completo, do obscuro para o claro.  Assim no AT eles ainda não tinham a completa, clara revelação moral de Deus que temos no NT, e, portanto, expressaram ódio em vez de amor (Ex 6.2,3; Hb 11.13).

2) Tempo Futuro – Muitas das expressões imprecatórias estão no tempo futuro no original Hebraico, e assim expressam o que vai acontecer no reinado final de Jesus, e não o que o Salmista deseja.  Mas esta explicação não soluciona outros trechos como Sl 45.9 ou Sl 137.9 cujos verbos estão no tempo presente.

3) Antiga Dispensação – Estes sentimentos imprecatórios fazem parte da velha dispensação e, portanto, foram superados pela nova dispensação que começou com Jesus.  Mas existem muitas exortações e até mandamentos de Deus na velha dispensação que exigiam misericórdia e compaixão e não vingança (Lv 19.9-18; Dt 24.14-22; Pr 25.21,22).  Além disto, há expressões imprecatórias no NT (veja 2Tm 4.14; Gl 1.8,9).

4) Calamidades Temporárias – As imprecações pedem calamidades apenas temporárias que não afetam o estado eterno da alma.  Mas a atitude imprecatória ainda está errada em si mesma.

Estas explicações não me parecem as melhores, embora as respeite. Por isto alinho algumas outras que me parecem mais coerentes.

1) Dirigidos contra os transgressores em rebelião contra Deus (Ex. Sl 5.10).  O salmista vê o pecado na sua verdadeira natureza como rebelião contra Deus.  Ele se identifica com Deus contra o pecado, abominando-o como Deus o abomina (Sl 139.21,22).  O motivo da ira do salmista não é vingança pessoal ou ciúme ou ambição de um homem para com um outro que o tem ofendido.  Ele está perturbado porque a glória e santidade de Deus têm sido ofendidas.  Suas imprecações não são contra homens como homens, mas contra homens como inimigos de Deus.  Esta explicação do motivo atrás dos salmos imprecatórios explica pelo menos dois terços deles.

2) Rei Teocrático – Das 21 imprecações específicas, 16 são de Davi, um rei teocrático.  Ele sabia que foi ungido por Deus a fim de reinar em prol de Deus e que era responsável perante Deus.  Quando estava morrendo, Davi ordenou Salomão de punir os que tinham agido contra ele como representante de Deus (1Rs 2.5-10).  Os que lutaram contra Davi estavam lutando contra o ungido de Deus (1Sm 24.6,10; 26.9-11).  Nos Salmos imprecatórios, Davi também escreveu como rei teocrático, não como homem pessoal (veja Sl 59.11; 69.6; 40.9,10).  O que está na mira aqui é justiça pública, não vingança particular.

3) Anunciados depois que o salmista tinha mostrado bondade, a qual foi abusada e retribuída por mal da parte dos ímpios (veja Sl 35.12; 69.4; 109.5).  Temos que distinguir entre perdão e conivência.  É certo perdoar atos maus, errados – até 70 vezes 7 – mas se a atitude do ofensor não muda e ele continua deliberadamente no pecado e rebelião contra Deus, ao continuar perdoando tornamo-nos coniventes do pecado dele.  Temos que condenar o pecado enquanto tentamos resgatar o pecador.  É neste sentido que o espírito de alguns dos salmos imprecatórios é justificável.

4) O NT ensina que é possível irar-se e não pecar (Ef 4.26).  Esta é até uma citação do Sl 4.4.  Existe uma ira santa contra o pecado.  Apesar de Deus ser tardio em irar-se (Úx 20.5,6; 34.6,7), Ele de maneira alguma toma por inocente aquele que se rebela contra Ele.  Há muitos trechos bíblicos que mostram a ira de Deus (Úx 4.14; Nm 11.1; 32.13; 2Rs 17.18; Ap 14.19; 19.15, etc.).  Jesus também lançou fora do templo com veemência os cambiadores, pelo zelo da casa do Senhor (Jo 2.13-17; Sl 69.9).  A ira, quando surge porque a pessoa foi ofendida pessoalmente, ou porque alguém cruzou seus desejos, planos, ambições, direitos, é egoísta e pecaminosa.  Mas muito do que vimos e ouvimos hoje como “amor irrestrito” nada mais é do que um sentimentalismo insípido de uma pessoa que não tem princípios éticos e morais firmes, absolutos, e bíblicos na sua vida.  A ética da situação, a ética do relativismo tem afrouxado nossa cosmovisão do que é certo ou errado.  Deus é amor (1Jo 4.8,16), mas Deus também é santo (Lv 11.44; 19.2; 1Pe 1.16) e justo (Sl 11.7; 145.17).

Os salmos imprecatórios, portanto, são justificáveis nos seus motivos e espírito. São compreensíveis para aquela época e para aquele estágio da revelação, mas, realmente, não são cristãos.

20. OUTROS GRUPOS DE SALMOS

(1) SALMOS DE ALELUIA – Existem dez Salmos – 106, 111, 112, 113, 135, 146, 147, 148, 149, 150 – que são chamados “Salmos de Aleluia” porque cada um começa com a expressão “Hallelu-Yah” (traduzida em nossas Bíblias com as palavras “Louvai ao Senhor”) e todos menos dois (Sl 111 e Sl 112) também terminam com “Hallelu-Yah”.  Ela “é uma expressão litúrgica que conclamava os adoradores a participarem de uma das mais altas formas de devoção que podem ser oferecidas a Deus.  O termo é restrito aos cânticos de louvor nas Escrituras, e ocorre vinte e quatro vezes nos Salmos e quatro vezes no Apocalipse….  Na adoração coletiva, esta invocação ou exclamação era feita predominantemente nas festas da Páscoa, Pentecostes e dos Tabernáculos, embora, obviamente, também tivesse um lugar constante nas devoções particulares.  No período da sinagoga, o “Halel Egípcio” (Sl 113-118) era recitado como parte da cerimônia doméstica da Páscoa, sendo que os dois primeiros Salmos antecediam a refeição e os demais eram cantados no fim (cf. Mt 26.30).  Os Salmos 135-36 eram cantados no sábado, ao passo que o “Grande Halel” (Sl 120-136), ou Sl 135-136, ou Sl 145-150 eram cantados nos cultos matutinos.  O NT termina com um coro celestial bradando “Aleluia´, palavra esta que se tornou parte permanente da adoração cristã.”

(2) SALMOS PENITENCIAIS – Há sete Salmos assim classificados – 6, 32, 38, (39) 51, 102, 130, 143.  Alguns outros Salmos também contém trechos penitenciais.

(3) SALMOS MESSIÂNICOS  –

21. TRECHOS PROBLEMÁTICOS NOS SALMOS  (Exemplo = Sl 6.5; Sl 146.4; Ec 9.5,10)- Há vários versículos em salmos diferentes que são de difícil interpretação.  Vamos lidar com alguns.

(1) SALMO 5.4-6; 11.5 – Estes versículos, entre outros nos Salmos, ensinam que Deus odeia o pecador.  Juntando-os com Ml 1.2-3, parece que temos uma contradição com o ensinamento que Deus ama o pecador, mas aborrece o pecado dele (Jo 3.16; Rm 5.8-10).  Resposta – Somente Satanás “ama” o pecador na sua transgressão e oposição a Deus.  Deus ama o pecador porque ele é feito na imagem de Deus, mas vai – terá que, na base de sua natureza – punir o pecador que continua no seu pecado e rebelião.  Assim a santidade de Deus opera em amor e o amor de Deus opera em santidade; estes dois atributos de Deus não são opostos.  A visão do Salmista é que a ira de Deus cairá sobre os rebeldes no seu estado de oposição (2Ts 1.7-9).

(2) SALMO 30 – O título do Salmo “Cântico para a ocasião da dedicação do templo” parece tão estranho e impróprio para Salmo 30, que trata basicamente o louvor pessoal e gratidão de Davi pela cura (vs 2) e livramento da morte (vv. 3, 9).   Resposta – Este título não é o sobrescrito do Salmo 30, mas a subscrição do Salmo 29, que por sinal, é um Salmo excelente para ser cantado na dedicação do templo.  Trêss outras possibilidades são: o Salmo está se referindo à dedicação da CASA de Davi (2Sm 5.11); o Salmo está se referindo à consagração do altar na Eira de Ornan como se fosse a “casa do Senhor” (1Cr 21.26;22.1), e, por fim, a que me me parece melhor:. “casa” é também família e descendência. O Salmo trata da preservação da vida de Davi, em alguma enfermidade, o que permitiu que sua casa pudesse ser firmada.

(3) SALMO 34 – Este Salmo, em algumas Bíblias, tem por título “Salmo de Davi quando mudou o seu semblante perante Abimeleque, que o expulsou, e ele se foi”.  Segundo 1Sm 21.10-15, o nome do rei era “Áquis”, não “Abimeleque”.   Resposta – Este Salmo, que é o 3º Salmo acróstico (Sl 9,10 é o 1º e Sl 25 o 2º), tem um título que não aparece em todos os manuscritos vel antigos.  Portanto, algumas traduções da Bíblia deixam fora este título.  O rei Aquis provavelmente tinha um segundo ou outro nome que era “Abimeleque”, como: Gideão tinha o nome de “Jerubbaal” (Jz 6.32; 7.1), Salomão tinha “Jedidias” (2Sm 12.25), e Zedequias tinha o nome de “Matanias” (2Rs 24.17).  Uma outra possibilidade é que o nome Abimeleque era um título e não propriamente um nome, como “Faraó” era um título dos líderes egípcios, ou “César”, que era o nome da família de Júlio César, tornou-se o título dos imperadores romanos depois – César Augusto, César Tibério, César Cláudio, etc.  Uma prova deste nome dinástico é que o rei filisteu em Gn 20.2 foi chamado Abimeleque de Gerar.  Setenta e cinco anos depois, um outro rei filisteu foi chamado Abimeleque de Gerar (Gn 26.1). A tradução do nome é meu pai é rei ou o rei é meu pai. Esta me parece mais forte.

(4) SALMO 37.25,26 – “…nunca vi desamparado o justo, nem a sua descendência a mendigar o pão.”(veja também Sl 34.10; Pv 10.3).  Onde esteve o salmista  durante a sua vida?  Esta afirmação parece completamente falsa quando contemplamos nosso mundo com mais de 150.000 mártires cristãos por ano.  Incontáveis cristãos já foram perseguidos por sua fé, morrendo de fome.  O próprio Davi teve que pedir alimentação de Nabal para ele e seus companheiros na época em que fugiu de Saul (1Sm 25..11-13,18; veja também Hb 11.36-40).  Como podemos harmonizar a história e nossa observação/experiência hoje com este trecho bíblico e com versículos como Mt 6.25-33, etc.?    Resposta – Davi está fazendo um contraste do transitório com o perdurável, do temporário com o eterno.  Que sofreremos neste mundo não há dúvida, mas não seremos continuamente desamparados, destituídos (Jo 16.33; 1Ts 3.3).  Salmo 73.3-5,13-14,17,19,23 mostra que Asafe lutou com este problema.  Jesus também se sentiu abandonado na cruz (Mt 27.46) no sentido temporário.  Alguém disse que o moinho de Deus gira vagarosamente, mas ele mói muito fino.  Deus endireitará as coisas, e se o aparente “desamparo” não se resolve em nossa vida, pelo menos nossa “descendência” não mendigará pão.  Estes versículos (Sl 37.25,26) são escritos na forma de provérbio, e é a natureza do provérbio falar em generalidades -a maior parte da experiência – sem tratar das exceções.

(5)  SALMO 44.23-26 – (Veja também Sl 35.23; 73.20) – Deus dormindo.  Salmo 121.4 diz claramente que Deus não dorme, nem mesmo cochila (tosqueneja).  Segundo os Tabletes de Ugarite e 1Rs 18.27, Baal, o falso deus, é que dorme, mas Deus nunca.  Eis um esboço do Sl 44:

1. O Passado Glorioso – 44.1-8

2. O Presente Desastroso – 44.9-16

3. A Causa Desconhecida – 44.17-23

4. O Clamor Angustiante – 44.23-26

O problema é semelhante ao de Jó – “Por que o justo sofre”?  A filosofia dos amigos era “sofrimento é resultado do pecado” – Jó 4.7,8; 8.2-6. Resposta – Achado em Sl 44.22; nosso sofrimento nem sempre é por causa do pecado pessoal, mas por causa da batalha espiritual entre os inimigos de Deus e Deus, envolvendo assim os filhos de Deus.  Sl 44.23-26 é um pedido em termos figurativos, antropomórficos.  Deus como espírito não pode dormir, perder contato com a realidade.  O grito do Salmista é um grito militar.  Ele não está pedindo Deus acordar do sono, mas marchar em militância para defender seu Nome e seu povo.  Veja Jz 5.12 onde Débora usa esta expressão; também Nu 10.33-36.  O uso aqui é bem diferente do que em Ef 5.14 ou em Lc 8.24.  É verdade que Deus defere seus julgamentos, sua punição; que Ele está tolerante do ímpio muito além do merecido (2Pe 3.8,9), mas isso não deve ser confundido com apatia ou descuido ou falta de percepção da parte de Deus.

(6) SALMO 49.12,20 – “o homem… não permanece; antes é como os animais que perecem”.  Temos esta expressão duas vezes no Salmo, com palavras idênticas ainda que não iguais no hebraico.  Ec 3.19-22 enfatiza o mesmo ensinamento.  A morte é o grande nivelador de todos os homens e animais.  Esboço do Sl 49:

1. Introdução – 49.1-4 (enigma/parábola)                        3. O homem perecerá – 49.13-20

2. O homem não permanecerá – 49.5-12                           (1) Por causa da auto-confiança – 49.13,14

(1) Apesar das riquezas – 49.5-9                                      (2) Sem levar nada consigo – 49.16-20

(2) Apesar da sabedoria – 49.10                                                      (riquezas, felicidade, louvor)

(3) Apesar da posição social – 49.11,12                          4. Somente Deus pode remir e receber – 49.15

Veja o Salmo 73.3-5,13-16,24 para verificar o mesmo princípio.

Resposta – Em termos de deixar tudo para trás na ocasião da morte, somos como os animais.  A morte consumirá tudo (49.14,17).  Confiar em riquezas, sabedoria, posição social, autojustiça é a maior tolice, pois eles não têm valor após túmulo.  O temor de Deus é o princípio da sabedoria (Pv 1.7), pois depois da morte, Deus remirá a alma do poder do Sheol, e receberá quem confia nele (Sl 49.15; Gn 5.23).

(7) SALMO 68.11 – “grande é a companhia dos que anunciam as boas novas”.  A palavra hebraica “tsaba” indica que esta grande companhia (exército, multidão das mensageiras) que anuncia (prega) é feito exclusivamente de mulheres organizadas para guerra.  Onde estamos então com nossas proibições de pastoras nas igrejas evangélicas?  Resposta – Muitas vezes as mulheres serviam como líderes dos cânticos de vitória (Ex 15.20,21; Jz 5.1-32; 1Sm 18.7).  Talvez a referência seja a estas mulheres proclamando as boas novas destas vitórias.  Porém, a primeira parte do versículo diz que “o Senhor proclama a palavra”.  Esta “palavra” (‘omer) no hebraico, não significa notícia qualquer, mas se refere à voz (palavra) de Deus (Sl 68.33).  Sem dúvida, o versículo implica que as mulheres têm seu lugar como mensageiras que pregam as boas novas (Is 40.9; Jl 2.28; At 2.17,18).  Quem está em busca de versículos que restringem as mulheres na pregação da Palavra vai ter que olhar em outros trechos bíblicos para receber apoio.  As mulheres estão em destaque aqui.

(8) SALMO 82.1,6 – “Deus… julga no meio dos deuses (elohim)”.  (Veja também Sl 86.8; 95.3; 96.4,5; 97.7,9; 135.5; 136.2; 138.1) Será que o salmista está reconhecendo a existência de deuses em rivalidade a Jeová?  Será que  Asafe era um politeísta?    Resposta – A cena é de uma sala de tribunal (v. 1).  Deus está presente no meio dos juízes e administradores terrenos, e agora acusa estes ( os elohim), que deveriam representá-lo com justiça e retidão, de injustiça e parcialidade a favor dos ímpios.  A palavra “elohim” é muito usada no AT para se referir aos juízes, administradores, etc., que representavam Deus (veja Úx 21.6; 22.8; Sl 138.1; etc.).

Desde Gn 9.6, Deus transferiu o exercício do seu poder na terra para estes “deuses” subordinados (veja Rm 13.1-7).  Os pastores de Jr 23.1,2,4 e Ez 34.2-4,8-10 também são estes líderes dos quais Deus exigirá contas.

Sl 82.6 foi citado por Jesus (Jo 10.34-36) como argumento para apoiar sua reivindicação à divindade perante os judeus em Jerusalém na ocasião da festa da dedicação.  Rm 8.14,16.17 ensina que os que possuem o Espírito Santo, e são guiados por Ele, são filhos de Deus, afirmando Sl 82.6 “Eu disse: Vós sois deuses (elohim)”.

(9) SALMO 105.23-25 – “mudou o coração destes (os inimigos egípcios) para que odiassem o seu povo”.  Será que Deus é o autor do mal (Is 45.6,7)?  Será que Deus endurece a quem Ele quer e tem misericórdia de quem Ele quer, de uma forma arbitrária e caprichosa?  Veja Rm 9.13-22; Is 6.9,10; Mc 4.12; Jo 12.39-42).  Resposta – Temos que diferenciar entre a Vontade/Decretos Diretivos de Deus = a causa primária, e a Vontade/Decretos Permissivos de Deus = a consequência secundária.  Quase todas as profecias de julgamento por Deus são condicionais; ex. Jonas 3.4,5,10.  No caso de Faraó, Deus profetizou o endurecimento do seu coração (Úx 4.21; 7.3).  Porém, Faraó poderia ter alcançado misericórdia, pois a presciência de Deus não é determinativa.  A verdade é que Faraó endureceu seu coração 10 vezes primeiro durante as primeiras das dez pragas (Úx 7.13,14,22; 8.15,19,32; 9.7,34,35; 13.15).  Foi depois disto, que a longanimidade de Deus se esgotou (2Pe 3.8,9) e Deus começou a endurecer o coração de Faraó (Úx 9.12; 10.1,20,27; 11.10; 14.4,8,17).  Gn 6.3 indica que o Espírito de Deus nem sempre contenderá com o homem.  Chega o ponto em que Deus diz “basta, agora não há mais chance”.  Rm 1.18-32 ensina este mesmo princípio; o homem rejeita a Deus (Rm 1.18-23) e, portanto, Deus rejeita e entrega o homem a seus desejos (Rm 1.24-32).

Defrontamo-nos aqui mais uma vez com uma “antinomia” – o relacionamento entre a soberania de Deus e o livre arbítrio do homem.  Que Deus governa e controla os eventos da história do homem não há dúvida (Da 2.21; 4.17,32,34,35; 5.21; At 2.23,24; 4.27,28).  Deus faz com que até a ira do homem O louva (Sl 76.10).  Mas isso não exonera o homem de sua responsabilidade/liberdade de escolher o caminho certo e reto (Dt 30.19-20; Js 24.15).

(10) SALMO 137.8-9 – “feliz aquele que pegar em teus pequeninos e der com eles nas pedras”.  Esta é a mais dura exclamação imprecatória de todos os Salmos.  Outros Salmos de imprecações duras são 55, 59, 69, 79, e 109.  Resposta – Estes Salmos invocam o julgamento, a calamidade ou a maldição mediante um apelo a Deus que é o único juiz de todos os homens, e que julgará com justiça e equidade (Sl 96.13; 98.9).  Estas invocações não são meras irrupções de um espírito vingativo (Rm 12.19-21), mas são orações endereçadas a Deus, pedindo a Ele cumprir o que já prometeu fazer com os ímpios.  Veja Sl 37.2,9-10,15,35-38; 55.23; 63.9-11; 64.7-9; etc.  Os ataques dos ímpios aos fiéis como Davi, que representava Deus na sua posição de monarca, eram na análise final ataques contra Deus.   Em Lc 19.42-44, na frase “e te derribarão , a ti e aos teus filhos que dentro de ti estiverem”, Jesus usou a mesma palavra grega “édaphiousin” (arremeter, bater, quebrar com estrépito) que a LXX usou na sua tradução de Sl 137.9 da frase “e der com eles nas pedras.”  Esta palavra não é usada em nenhum outro versículo da Bíblia, indicando que Jesus estava se referindo a Sl 137.8,9.  A palavra “pequeninos” não indica a idade da criança, pois pode se referir a um adolescente, mas refere-se ao relacionamento com os pais ímpios cujos pecados foram repetidos na próxima geração.

CONCLUSÃO

É nos possível verificar porque o livro de Salmos foi um solo fértil para as idéias messiânicas. Sendo um povo que se expressava mais poeticamente do que discursivamente, que usava mais figuras de linguagem que conceitos, que se valia da tipologia (um tipo prefigurava outro), os discípulos interpretaram várias passagens como alusivas a Jesus. Isto não significa que agiram erradamente. Pelo contrário. Agiram certos, inspirados pelo Espírito Santo de Deus. Mas não pensemos em psicografia espírita, em que foram possessos por alguma entidade, ou que receberam uma mensagem num vácuo intelectual e cultural. Eles foram pesquisar em sua religião e em sua cultura o que acontecera. E descobriram aquilo que cremos de todo coração: que o Antigo Testamento em geral, e os Salmos, em particular, dão testemunho de Jesus como o Messias de Deus.

BIBLIOGRAFIA EM PORTUGUÚS PARA AVANÇO NOS ESTUDOS

CALVINO, João. O livro dos salmos – 4 volumes. São Paulo: Edições Parakletos.

CHOURAQUI, André. Louvores – Salmos. 2 volumes. Rio de Janeiro: Imago Editora.

COELHO FILHO, Isaltino. Teologia dos salmos. Rio de Janeiro: JUERP.

GIRARD, Marc. Como ler o livro dos salmos – espelho da vida do povo. São Paulo: Edições Paulinas.

GOURGUES, M. Os salmos e Jesus – Jesus e os salmos. São Paulo: Edições Paulinas.

KIDNER, Derek. Salmos – introdução e comentário – 2 volumes. São Paulo: Mundo Cristão e Vida Nova.

MORRIS, Henry. Amostra de salmos. Miami: Editora Vida.

MURPHY, R. E. Jó e Salmos – encontro e confronto com Deus. São Paulo: Edições Paulinas.

PEARLMAN, Myer. Ouro para te enriquecer. Pindamonhagaba: Instituto Bíblico das Assembléias de Deus.

STOTT, John. Salmos favoritos. São Paulo: Abba Press.

WEISER, Artur. Os salmos. São Paulo: Paulus.


[1] O Halel sempre foi cantado no templo quando os cordeiros foram mortos na Páscoa em sacrifício.  As famílias também cantavam o Halel em casa nas suas festas particulares da Páscoa.  Ele também foi cantado nas Festas de Pentecostes, Tabernáculos, e Dedicação.

[2] Sobre isso, veja  meu livro,  “A Teologia dos Salmos”, onde mostro como o melhor retrato de Jesus, no Antigo Testamento, está no Saltério.

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