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UM ESTUDO EM 1TIMÓTEO

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Estudo ampliado do esboço preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho para os pastores batistas em Cabo Frio, RJ, agosto de 2004

INTRODUÇÃO

As cartas a Timóteo e a Tito são chamadas de “epístolas pastorais”. Na realidade, todas as cartas de Paulo foram pastorais, porque ele as escreveu como um pastor. Mas estas são assim chamadas porque foram dirigidas a dois pastores: Timóteo e Tito. O sentido da palavra “pastoral” aqui ficou quase como sendo sinônimo de “clerical”, uma carta para pastores. Somos pastores. Servem-nos por isto. Paulo, o grande pastor, missionário, o maior teólogo da igreja, tem algo a nos dizer aqui. Vejamos, aprendamos e tenhamos humildade de internalizar.

QUEM É TIMÓTEO?

Comecemos pelo destinatário da epístola. Foi chamado de “filho”, por Paulo: “Esta admoestação te dirijo, filho Timóteo, que segundo as profecias que houve acerca de ti, por elas pelejes a boa peleja” (1.18). Em parte pelo acompanhamento (antes, se chamava “discipulado”; agora, se chama “mentoreamento”; amanhã, não sabemos qual o termo, porque gostamos muito de termos novos e pomposos para as coisas antigas). Mas fica uma pista para nós: como deve ser o relacionamento entre pastores, principalmente mais experientes e novos. Não é de rivalidade, mas solidariedade e mutualidade. Os pastores mais idosos não devem sentir ciúmes, mas apoiar os mais novos. E estes não devem ver os mais velhos como múmias ultrapassadas, mas como alguém que já passou por onde eles estão e sabem das pedras no caminho. Paulo determinara um certo tipo de trabalho para Timóteo: “Como te roguei, quando partia para a Macedônia, que ficasse em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinassem doutrina diversa, nem se preocupassem com fábulas ou genealogias intermináveis, pois que produzem antes discussões que edificação para com Deus, que se funda na fé…” (1.3-4). Era Paulo uma espécie de bispo, coordenador, ou era Timóteo seu auxiliar?

Timóteo recebera o “dom da graça” (não um carisma, mas ofício) por imposição de mãos: 4.14 (“Não negligencies o dom que há em ti, o qual te foi dado por profecia, com a imposição das mãos do presbíterio”) e 2Timóteo 1.6 (“Por esta razão te lembro que despertes o dom de Deus, que há em ti pela imposição das minhas mãos”). Parece que o jovem pastor tinha, ainda, uma função de distribuir valores materiais: “Os anciãos que governam bem sejam tidos por dignos de duplicada honra, especialmente os que labutam na pregação e no ensino” (5.17). A Linguagem de Hoje captou bem o sentido do texto grego, ao traduzir como “Os presbíteros que fazem um bom trabalho na igreja merecem pagamento em dobro, especialmente os que se esforçam na pregação do evangelho e no ensino cristão”. Esta responsabilidade parece ser de Timóteo: pagar os pastores. Ou talvez fosse ele alguém que recebia ofertas das igrejas para distribuir (seria ele uma espécie de tesoureiro de uma associação de igrejas?) ou exercesse outra função que demandasse remunerar obreiros. Mas, além disso, o jovem pastor parece ter alguma autoridade (moral? Institucional?) sobre outros pastores: “Não aceites acusação contra um ancião, senão com duas ou três testemunhas. Aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os outros tenham temor. Conjuro-te diante de Deus, e de Cristo Jesus, e dos anjos eleitos, que sem prevenção guardes estas coisas, nada fazendo com parcialidade. A ninguém imponhas precipitadamente as mãos, nem participes dos pecados alheios; conserva-te a ti mesmo puro” (5.19-22). Temos poucos dados para afirmar categoricamente, mas uma coisa é certa: as informações textuais não nos mostram era o jovenzinho assustado e fracote que alguns pensam ter sido. Surpreendeu-me (na revisão deste trabalho, em 2010) ver na introdução da Bíblia Almeida Século 21 a declaração de que Timóteo era “um pastor ainda sem experiência”. Como se afirma isso? Ele seria mesmo um doentinho inexperiente?   Num artigo que escrevi sobre este jovem pastor e que intitulei de “Timóteo, a fé não fingida”, faço esta observação:

Normalmente, a imagem que fazemos de Timóteo é de um jovem fraco e enfermiço, por causa da declaração de Paulo: “por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades” (1Tm 5.23). Até mesmo Stott, autor criterioso, o dá como “de estrutura física fraca, de disposição tímida…”. Segundo Fairbain, Timóteo era “mais inclinado a ser comandado do que a comandar”. De onde Stott e Fairbain tiraram estas idéias?

À luz das passagens mencionadas, Timóteo parece ter sido um jovem com responsabilidades enormes no reino. E parece ter dado conta delas. Não há censura alguma de Paulo a ele, nas cartas. Apenas palavras que mostram satisfação e confiança.  A linguagem carinhosa de Paulo, produto de seu zelo e amor por Timóteo, pode induzir alguém a pensar na fragilidade deste, mas devemos nos ater às declarações bíblicas. Um pastor sério sempre admoesta, com preocupação, um pastor mais jovem. Principalmente se o considera com um filho. Mas estereotipar Timóteo com um jovem tonto ou inexperiente me parece demais, principalmente quando, num estudo acurado, vemos que ele tinha atribuições de um homem maduro e acatado, na igreja. Suas responsabilidades incluíam uma espécie de autoridade sobre os pastores, mesmo que, como batistas, não aceitemos a idéia de um bispado em termos de um pastor-chefe (ou, como, em imitação dos americanos, alguns brasileiros intitulam o pastor titular de “pastor sênior”).

AS FUNÇÕES DE TIMÓTEO

Que fazia ele? O que Paulo esperava dele e lhe designara como tarefa? São algumas tarefas pastorais, nossas, e algo que se espera de nós, como pastores. Vejamos.

(1) Zelar pelo depósito teológico e espiritual da igreja, como se lê em 1.3-4 (“Como te roguei, quando partia para a Macedônia, que ficasse em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinassem doutrina diversa, nem se preocupassem com fábulas ou genealogias intermináveis, pois que produzem antes discussões que edificação para com Deus, que se funda na fé…”), em 6.3-5 (“Se alguém ensina alguma doutrina diversa, e não se conforma com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com a doutrina que é segundo a piedade, é soberbo, e nada sabe, mas delira acerca de questões e contendas de palavras, das quais nascem invejas, porfias, injúrias, suspeitas maliciosas, disputas de homens corruptos de entendimento, e privados da verdade, cuidando que a piedade é fonte de lucro Se alguém ensina alguma doutrina diversa, e não se conforma com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com a doutrina que é segundo a piedade, e, por fim, em 6.20-21 (“Ó Timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, evitando as conversas vãs e profanas e as oposições da falsamente chamada ciência; a qual professando-a alguns, se desviaram da fé. A graça seja convosco”). Esta é uma das funções pastorais. O pastor é o guardião da herança teológica da igreja. Infelizmente, muitos pastores hoje acham que só serão legitimados se forem novidadeiros. Há gente abraçando novidades exóticas porque acham que isso é ser pastor: criar coisas novas, em vez de defender as antigas. A eclesiologia contemporânea tem se tornado um circo de horrores porque alguns têm uma necessidade incurável de criar novidades.

(2) Apregoar a verdade. Não apenas defendê-la, mas pregá-la. Deve lutar pelo evangelho com base em sua autoridade espiritual: “Esta admoestação te dirijo, filho Timóteo, que segundo as profecias que houve acerca de ti, por elas pelejes a boa peleja” (1.18), e deve, também, ensinar com esta autoridade: “Propondo estas coisas aos irmãos, serás bom ministro de Cristo Jesus, nutrido pelas palavras da fé e da boa doutrina que tens seguido” e “Manda estas coisas e ensina-as” (4.6 e 11). Deve exortar a todas as faixas etárias da igreja: “Não repreendas asperamente a um velho, mas admoesta-o como a um pai; aos moços, como a irmãos; às mulheres idosas, como a mães; às moças, como a irmãs, com toda a pureza” e “Manda, pois, estas coisas, para que elas sejam irrepreensíveis” (5.1-2 e 7). Deve, ainda, repreender os que estão em pecado, na igreja: “Aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os outros tenham temor” (5.20), bem como exortar os poderosos: “manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem ponham a sua esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que nos concede abundantemente todas as coisas para delas gozarmos; que pratiquem o bem, que se enriqueçam de boas obras, que sejam liberais e generosos, entesourando para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a verdadeira vida. (6.17-19). Deve exortar e ensinar, ou seja, deve ser um homem que ensine o povo dentro das Escrituras: “Até que eu vá, aplica-te à leitura, à exortação, e ao ensino”(4.13). É oportuno lembrar que, neste texto, a expressão “aplica-te à leitura” significa a leitura pública das Escrituras. Ele deveria fazer a leitura pública das Escrituras e expô-las. Assim se fazia nas sinagogas, de onde a igreja herdou seu estilo de culto. Este é o significado do termo. O foco do seu ensino devia ser as Escrituras. É uma pena que muitos pastores hoje estejam deixando a Bíblia de lado e ensinando suas opiniões pessoais, ou as de homens ladinos cuja preocupação é apenas com bens materiais. Ou, ainda, opiniões de pensadores e artistas incrédulos, secularizando o púlpito. Timóteo não deveria ser um bajulador nem um pregador de auto-ajuda, mas um ensinador da Palavra de Deus. Quem queira ser apóstolo, hoje, e queira comandar pastores, deveria ter a simplicidade e o despojamento material de Paulo. E deveria dar conselho como os de Paulo.

(3) Amadurecer espiritual e teologicamente. Este último tópico merece atenção especial.  Não se trata do mero acúmulo de informação, mas a busca constante de amadurecimento espiritual e teológico, pois a expressão “até à minha chegada” mostra que Paulo continuava a investir nele. O obreiro precisa investir em si mesmo: “Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas. Exercita-te a ti mesmo na piedade. Pois o exercício corporal para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, visto que tem a promessa da vida presente e da que há de vir” (4.7-8). Obreiro que para de crescer espiritualmente terá sérias dificuldades em seu ministério. Ser pastor é sério demais para o obreiro estagnar e julgar que, porque consagrado ao ministério, alcançou a plenitude do saber e do caráter espiritual.

Devemos prestar atenção num aspecto: o ensino pastoral tem dois ângulos: (1) rejeitar o que se opõe à doutrina sadia, e (2) fortalecer a doutrina sadia. Isto sem deixar de cuidar de si mesmo. Há obreiros que tornam executivos espirituais e se parecem cada vez mais executivos, e cada vez menos homens espirituais. E há igrejas que cada vez mais parecem com empresas e cada vez menos agências do reino. Há conselhos de obreiros que se assemelham muito mais a conselhos administrativos seculares que um encontro de homens e mulheres de Deus para tratar das coisas de Deus. Devemos ter muito cuidado para não descaracterizarmos a igreja. O cuidado espiritual deve ser a primazia. É mais importante que o material. Deus cuida da igreja. Mas nós somos a igreja e devemos nos portar como igreja, não como empresa secular.

COMO TIMÓTEO DEVE SER?

Em primeiro lugar, ele deve saber que é um militante cristão, batalhando pela fé, e mantendo um caráter elevado: “Esta admoestação te dirijo, filho Timóteo, que segundo as profecias que houve acerca de ti, por elas pelejes a boa peleja, conservando a fé, e uma boa consciência, a qual alguns havendo rejeitado, naufragando no tocante à fé; e entre esses Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a Satanás, para que aprendam a não blasfemar” (1.18-20). O pastor não é um diletante. É uma pessoa engajada no reino e lutadora pelo evangelho. Não é um bon vivant preguiçoso, e oportunista, mas um batalhador. Isto se vê, também, na figura do atleta: “Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas. Exercita-te a ti mesmo na piedade. Pois o exercício corporal para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, visto que tem a promessa da vida presente e da que há de vir”. (4.7-8). São figuras de movimento, de alguém sempre em ação.

Timóteo deveria ter sensibilidade e prudência. Há obreiros insensíveis, que não amam as ovelhas nem ao Senhor, mas apenas o seu ministério ou, talvez seja melhor dizer assim, sua carreira. Eles são o centro de seu ministério.  Ele deveria respeitar os idosos como se fossem seu pai e sua mãe: “Não repreendas asperamente a um velho, mas admoesta-o como a um pai; aos moços, como a irmãos; às mulheres idosas, como a mães; às moças, como a irmãs, com toda a pureza” (5.1-2). Nestes versículos se vê que ele deveria ser como um irmão para os jovens (5.1) e como um irmão, casto, puro, com as moças (5.2). Não deveria abusar de sua autoridade. É bom lembrar que o pastor não é superior às pessoas nem está acima das regras de boa educação e de convivência social. Muita gente usa seu título eclesiástico para ser arrogante. Lembro-me de um pastor que fazia questão que seu rebanho, e até mesmo os colegas, o chamassem de “Pastor Doutor”. Isto revela infantilidade, insegurança e desconhecimento do ofício pastoral. Ministério é serviço e não honraria. A maior honra do pastor virá quando ele ouvir estas palavras do Senhor Jesus: “Disse-lhe o seu senhor: Muito bem, servo bom e fiel; sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor” (Mt 25.21). Por que aspirar a mais que isto?

Esta prudência se vê em que ele deveria testar os diáconos: “E também estes sejam primeiro provados, depois exercitem o diaconato, se forem irrepreensíveis” (3.10). Diáconos não são o departamento pessoal da igreja, nem estão acima da autoridade pastoral. Devem ser testados, primeiro. E só podem ser diáconos se forem “irrepreensíveis”.

Timóteo (e por extensão, nós, pastores) deveria ser cauteloso no que dizem sobre os colegas: “Não aceites acusação contra um ancião, senão com duas ou três testemunhas” (5.19). Há muito obreiro que ouve alguma coisa sobre um colega e, sem falar com este, passa para frente, muitas vezes aumentando o que ouviu. Alguns exultam com más notícias sobre os colegas, porque não os vêem como companheiros, mas como rivais. E tanto Timóteo como o obreiro de hoje devem ser cautelosos no impor as mãos sobre futuros colegas: “A ninguém imponhas precipitadamente as mãos” (5.22). Há gente consagrando obreiros “à tapa”, como se diz, alegando que o processo normal exigido pela Ordem dos Pastores Batistas do Brasil é uma burocracia muito complicada. Não é. Trata-se da seriedade do ministério que está sendo enfocada. É assim que o Novo Testamento recomenda, e é assim que deve ser feito. Consagrar um pastor é algo sério. O ministério pastoral não é para indignos ou despreparados. A melhor obra requer o melhor preparo e as melhores condições.

Na recomendação de Paulo a Timóteo, se vê que o obreiro deve ser um homem puro: “Conserva-te a ti mesmo puro” (5.22) e “com toda a pureza” (5.2 . Os termos aqui são, respectivamente,  hagnéia e hagnón. Não é o habitual katarós, que é puro, mas com o sentido de moral, de ética, de não mistura com o erro. Os termos hagnéia e hagnón aludem mais à pureza sacerdotal, daquilo que é consagrado a Deus. É o termo para Espírito Santo. É designativo da pureza como um ato de culto a Deus, não por força de moralidade pessoal ou exigência funcional. Designa, também,  a pureza do caráter, mais que dos atos. Cada pastor deve manter-se como uma oferta viva a Deus. Nossos ministérios devem ser um ato de culto vivo ao Deus Vivo. Ministério é ato de culto e não carreira secular.

O CONFLITO COM OS FALSOS MESTRES

Já vimos que Timóteo deveria zelar pelo tesouro teológico da igreja, protegendo-a dos falsos mestres. E em 1.3-11 o conflito com os falsos mestres é bem delineado: “Como te roguei, quando partia para a Macedônia, que ficasse em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinassem doutrina diversa, nem se preocupassem com fábulas ou genealogias intermináveis, pois que produzem antes discussões que edificação para com Deus, que se funda na fé… Mas o fim desta admoestação é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência, e de uma fé não fingida; das quais coisas alguns se desviaram, e se entregaram a discursos vãos, querendo ser doutores da lei, embora não entendam nem o que dizem nem o que com tanta confiança afirmam. Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usar legitimamente, reconhecendo que a lei não é feita para o justo, mas para os transgressores e insubordinados, os irreverentes e pecadores, os ímpios e profanos, para os parricidas, matricidas e homicidas, para os devassos, os sodomitas, os roubadores de homens, os mentirosos, os perjuros, e para tudo que for contrário à sã doutrina, segundo o evangelho da glória do Deus bendito, que me foi confiado”. Isto é dito sobre os falsos mestres em termos gerais. Mas, em termos particulares, que ensinavam eles?

(1) Ensinavam fábulas e genealogias: “Nem se preocupassem com fábulas ou genealogias intermináveis, pois que produzem antes discussões que edificação para com Deus, que se funda na fé…”. 1.4. Talvez seja uma alusão às discussões genealógicas dos judaizantes. Talvez (é outra possibilidade), se refira às lendas de personagens judaicas (principalmente nos apócrifos, cheios de lendas), uma tentativa de tornar fabuloso o conteúdo do evangelho. Há gente que não se conforma com a simplicidade da mensagem da cruz, e tenta adorná-la, com segredos “tremendos” que só iniciados podem receber. Aqui cabem os textos de Tito 1.14 (“não dando ouvidos a fábulas judaicas, nem a mandamentos de homens que se desviam da verdade”) e 2Timóteo 4.3-4: “Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo grande desejo de ouvir coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos, e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas se voltarão às fábulas”. É provável que Colossenses 2.16-19 também caiba aqui: “Ninguém, pois, vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa de dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados, que são sombras das coisas vindouras; mas o corpo é de Cristo. Ninguém atue como árbitro contra vós, afetando humildade ou culto aos anjos, firmando-se em coisas que tenha visto, inchado vãmente pelo seu entendimento carnal”. Uma exortação que não pode deixar de ser feita: o cristianismo rompeu com o sistema antigo e não deve voltar para onde saiu. Guardemos isso porque os judaizantes contemporâneos andam muito ativos. Devemos rejeitar, com veemência, os que querem sobrepor o Antigo Testamento ao Novo. Somos do Calvário, e não do Sinai ou o Sião; nada temos com a estrela de Davi e com a menorá, mas com a cruz. Somos a igreja de Cristo, e não um Israel remendado. Nosso vinho é o novo e não o velho. Somos pastores e não rabinos. Pregamos a Jesus e não a Moisés. Esperamos a segunda, e não a primeira vinda de Jesus.

Os contemporâneos de Timóteo queriam ser “mestres da lei” (o título não é acadêmico, mas denota a idéia de se sobrepor aos outros). Cuidado também com os muito espirituais, os “preferidos de Deus” e “capacitados especialmente” por Deus. São aqueles que estão cheios de visões, de descobertas de questões que nunca alguém viu, em dois mil anos de cristianismo. Geralmente se colocam acima da igreja e são eles mesmos o centro do seu ministério.

(2) Seu ensino tinha discordância do ensino de Jesus: “Se alguém ensina alguma doutrina diversa, e não se conforma com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com a doutrina que é segundo a piedade, é soberbo, e nada sabe, mas delira acerca de questões e contendas de palavras, das quais nascem invejas, porfias, injúrias, suspeitas maliciosas, disputas de homens corruptos de entendimento, e privados da verdade, cuidando que a piedade é fonte de lucro” (6.3-5). A igreja já possuía uma doutrina sobre Jesus (as cartas de Paulo mostram isso, bem como 1 e 2Pedro e 1João). A igreja precisa se firmar na cristologia. Talvez este seja um dos problemas mais sérios hoje, a ausência de conteúdo cristológico na pregação da igreja. Alguns setores estão mais ligados em demônios do que em Cristo. Certa vez me surpreendi ao entrar em uma livraria evangélica em busca de um livro sobre cristologia e não ter encontrado um sequer. Mas encontrei mais de quarenta sobre batalha espiritual, demônios, conquistar a cidade para Cristo, etc. Mais ênfase no demônio e em novidades teologicamente insustentáveis que na pessoa de Jesus. Nós pregamos a Cristo, e não novidades. É uma mensagem velha, a velha mensagem da cruz de Jesus. E lembremos esta expressão: “cuidando que a piedade é fonte de lucro”. Ministério não é para enriquecer os pastores. Pastores não fazem voto de pobreza, mas não devem ver o ministério como pretexto para construírem impérios econômicos. A expressão “Sou filho do Rei e mereço o melhor” beira o cinismo, mas vamos considerá-la fruto da ignorância bíblica e teológica. Somos servos de um homem que optou pela austeridade material: “As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8.20).

(3) Eles manifestavam discordância no conteúdo do ensino: “Mas o Espírito expressamente diz que em tempos posteriores alguns apostatarão da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios, pela hipocrisia de homens que falam mentiras e têm a sua própria consciência cauterizada, proibindo o casamento, e ordenando a abstinência de alimentos que Deus criou para serem recebidos com ações de graças pelos que são fiéis e que conhecem bem a verdade; pois todas as coisas criadas por Deus são boas, e nada deve ser rejeitado se é recebido com ações de graças; porque pela palavra de Deus e pela oração são santificadas” (4.1-5). O ascetismo e o ritualismo alimentar ameaçavam a igreja. A lição a tirarmos aqui é que a vida com Cristo não consiste de regras, mas de conteúdo: “Porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber, mas na justiça, na paz, e na alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). Estas declarações de Paulo, tanto em Timóteo como em Romanos, são duras críticas ao gnosticismo, que via o mundo material como mau e apenas o espiritual como bom. A vida toda é um dom de Deus. Os fariseus criaram uma rigorosa prescrição alimentar. E os neofariseus fazem o mesmo hoje, com seu neojudaísmo.

O APELO FINAL A TIMÓTEO

Paulo faz dois apelos muito fortes a Timóteo. Atentemos para eles, porque são apelos aos pastores de hoje. Não podemos ignorá-los.

O primeiro apelo está em 6.11-15: “Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão. Peleja a boa peleja da fé, apodera-te da vida eterna, para a qual foste chamado, tendo já feito boa confissão diante de muitas testemunhas. Diante de Deus, que todas as coisas vivifica, e de Cristo Jesus, que perante Pôncio Pilatos deu o testemunho da boa confissão, exorto-te a que guardes este mandamento sem mácula e irrepreensível até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; a qual, no tempo próprio, manifestará o bem-aventurado e único soberano, Rei dos reis e Senhor dos senhores”. Preste atenção aos verbos: fugir (do mal), seguir (o bem), combater (pelo evangelho), apossar-se (das promessas eternas), guardar (as prescrições de Paulo, seu dom, suas responsabilidades). O obreiro de Cristo deve investir em si. Há uma ironia trágica em Cânticos 1.6 (“Não repareis em eu ser morena, porque o sol crestou-me a tez; os filhos de minha mãe indignaram-se contra mim, e me puseram por guarda de vinhas; a minha vinha, porém, não guardei”): a sunamita guardou o que era dos outros, mas não guardou o que era seu. Há obreiros que guardam a igreja, os crentes e não guardam a si mesmos. Guarde-se a si mesmo, obreiro de Jesus! Guarde sua família! Guarde sua fé! Guarde sua integridade!

O segundo apelo se encontra em 6.20: “Ó Timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, evitando as conversas vãs e profanas e as oposições da falsamente chamada ciência; a qual professando-a alguns, se desviaram da fé”. Há obreiros que ficaram fascinados pelo mundo. O evangelho é demasiadamente simplório para eles. São apaixonados por filósofos e pensadores seculares, mas não o são pelo evangelho. Alguns interpretam a Bíblia e a pessoa de Jesus à luz de pensadores seculares incrédulos. Um obreiro me disse que desistiu de um curso teológico em nível de pós-graduação porque não aceitava a “Santíssima Trindade” que norteava a linha exegética do curso: Hegel-Marx-Weber.  Defender as Escrituras era pecado mortal, bem como negar as teses da “Trindade” do curso. Mas era um curso de Teologia, em um seminário evangélico! Talvez isso explique a perda de autoridade bíblica do púlpito, que se perde em devaneios humanos ou em “profecias e revelações”. E também porque os seminários perderam muito de sua credibilidade e de seu charme. Minou-se, no ensino de muitos deles, a autoridade das Escrituras.

Guardar a sã doutrina do evangelho é tarefa pesada e difícil. Era naquele tempo e não é menos, hoje. É expor-se ao ridículo e ser chamado de “fundamentalista” ou “defensor de conceitos, sem amor às pessoas”. Para isso, Timóteo deveria buscar a ajuda do Espírito Santo: “Guarda o bom depósito com o auxílio do Espírito Santo, que habita em nós” (2Tm 1.14). Para isso devemos também buscar a ajuda do Espírito Santo. Manter a igreja dentro do ensino do evangelho é uma importante função do pastor.

CONCLUSÃO

Provavelmente, caros colegas, não falei nada que vocês não soubessem. Não lhes disse nada de novo. Mas não é minha pretensão ensinar algo novo. Pelo contrário, quero ensinar (se assim posso dizer) algo velho, algo com raízes, algo histórico: a fé cristã em sua integridade. Exulto em ser pastor, mas tremo por ser pastor: porque ser pastor é zelar por esta herança legada por homens que formataram a vida e o pensamento da igreja. É ser servo de Cristo, ser servo do povo de Deus, dar continuidade à relação dos defensores do legado de Deus à sua igreja. Deus nos ajude a dar conta do recado.

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