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DESEJANDO SER UM OBREIRO MELHOR

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Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho para um encontro com os pastores em Imperatriz, MA, e apresentado dia 12.12.11

 

“Você conhece alguém que faz bem o seu trabalho? Saiba que ele é melhor do que a maioria e merece estar na companhia de reis” (Pv 22.29, NTLH).

A Bíblia faz este elogio a quem é competente no seu ofício. Fazer bem um trabalho é questão de capricho pessoal e de amor ao trabalho. Só preguiçosos e inconsequentes se desincumbem de sua tarefa de qualquer maneira. Quem é incumbido de uma tarefa e é negligente no fazê-la mostra que não tem noção de responsabilidade. E se a tarefa a ser desempenhada é no reino de Deus, a questão avulta de importância. Eu era seminarista, e no culto do café da manhã, no refeitório do seminário, num domingo, o também seminarista Ivo Seitz leu Jeremias 48.10: “Maldito aquele que fizer a obra do Senhor relaxadamente”. Isto foi há mais de quarenta anos, mas o impacto permanece comigo até hoje. Guardei isto: a obra de Deus não pode ser feita de qualquer maneira.

Pelé já era o maior jogador do mundo (naquela época não se fazia votação – ele era consenso mundial), e quando o treino do Santos terminava, ele pagava do seu bolso a dois juvenis para continuarem treinando com ele. Um cruzava a bola na área para ele completar, e o  outro ficava no gol. Ele já era o maior de todos, mas continuava treinando. Por isso era o maior. Mas encontramos pastores que já estão satisfeitos com o que são. Nunca se aperfeiçoam. Certa vez, um aluno meu de Homilética pronunciou esta frase, no sermão: “Que previlégio ter a Cristo como Adevogado!”. Corrigi-o depois, na análise do sermão, pois era minha tarefa. Disse-lhe que era “privilégio” e “advogado” (com “d” mudo). O ex-aluno, quase trinta anos depois, ainda fala “previlégio” e “adevogado”. Com todo respeito: o idioma é o instrumento de um pregador. Se ele não o estuda, sob qualquer desculpa, isto é lastimável.

O caso é pior quando se trata do caráter e da espiritualidade não aperfeiçoados. A pessoa continua com as mesmas falhas, e incide nas mesmas quedas há anos. Isto é relaxamento moral, o pior de todos. Um obreiro sério desejará ser melhor. Inclusive como gente. Há obreiros que se tornam pessoas intratáveis. Querer melhorar deve ser um anseio nosso. Pensemos um pouco sobre isto.

 

  1. É PRECISO MELHORAR CULTIVANDO UMA ESPIRITUALIDADE SEGURA E EQUILIBRADA

Esta é a primeira área em que o obreiro precisa melhorar. Na vida espiritual. É a base das demais. É mais importante que a ortodoxia. É preciso ter cuidado para não presumir que ortodoxia seja o aspecto mais importante da vida pastoral. É importante e eu cuido dela. Não preciso provar a ninguém que sou conservador e que não vejo isto como algo de que deva me envergonhar. Mas há ortodoxia raivosa. Alguém se referiu a um teólogo católico do passado como “o mastim do Senhor”. Soou-me horrível.  Eu mesmo tenho lutado para ser conservador sem ser um “pitbul” de Jesus. Porque os há. E como há! É uma coisa ser ardoroso e convicto e é outra ser um “jagunço de Cristo”. Vez por outra um “jagunço de Cristo” se zanga com o que escrevi, e me desanca com uma fúria que me impressiona. Ortodoxia sem espiritualidade tem cheiro de fogueira. Espiritualidade não combina com o cheiro de queimado.

Espiritualidade é um termo muito amplo e por isso vou defini-lo. Com ele quero falar sobre o cultivo da comunhão com o Senhor. Uma vida espiritual crescente e abundante. Ao dizê-la “segura e equilibrada” reconheço haver espiritualidade desequilibrada e por isso insegura. É aquela que os insights, os “eu acho”, ou “eu penso assim, ó” prevalecem. Há muito modismo e copismo em nosso meio. Chacrinha disse que “na televisão, nada se cria, tudo se copia”. No cenário evangélico também.  Desta maneira, os erros e equívocos se espalham com facilidade. Vamos  caracterizar, então.

Não creio em espiritualidade sadia fora do ensino das Escrituras. “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). “Escondi a tua palavra em meu coração para não pecar contra ti” (Sl 119.11). O que Deus mais pede de nós é obediência à sua palavra: “Por acaso o SENHOR tem tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que obedeça à sua voz? Obedecer é melhor que oferecer sacrifícios, e o atender, melhor que a gordura de carneiros” (1Sm 15.22). Na leitura, com fome, das Escrituras, e na aplicação dos seus ensinos à nossa vida está a santificação. Porque santificação nada mais que é obediência.  É conformidade à Palavra de Deus.

Este é um processo longo e penoso. O problema é que queremos atalhos. Queremos coisas rápidas e agradáveis.  As pessoas levam vinte anos engordando, querem emagrecer, mas não querem cortar hábitos. Querem uma cirurgia ou uma pílula para perder peso. Ninguém quer disciplina pessoal nem deixar de lado as coisas de que gosta. Há quem ame o erro e não quer deixá-lo nem quer lutar para superá-lo. Busca pílulas mágicas, ou atalhos. A moçada busca no louvor. Muitos pastores buscam em encontros e congressos, pensando que lá encontrarão um atalho. Vejo obreiros correndo de encontros em encontros em busca de alguma coisa que os satisfaça, espiritualmente. Voltam felizes, enganando-se a si mesmos, porque continuam os mesmos. E logo depois descobrem isso. E continuam procurando atalhos. Mas e o morrer diário? E a disciplina pessoal diária? E a palavra de Paulo: “Antes, subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão” (1Co 9.27)?  E a palavra de Jesus: “… tome cada diz a sua cruz…”, em Lucas 9.23? Tais palavras nos falam da luta para vencer-se a si mesmo, aos seus prazeres e apetites carnais. Não há atalhos, mas uma luta diária.

Há obreiros que só lêem a Bíblia para buscar sermão para o rebanho. São garçons subnutridos. Servem comida aos outros, mas não se alimentam. Por isso, sua comida é de má qualidade. Seus sermões podem impressionar pela oratória e manipulação, mas, cedo ou tarde se revelarão o que realmente são: artificiais. A maneira correta de se ler a Bíblia é com fome, para aprender, e depois fazer a pergunta: “À luz disto que li, onde devo mudar?”. Quando a lemos para nós temos sermões. Ela nos prega, primeiro, e depois a pregamos aos outros. Comentei com um colega, numa conversa que tratava de hábitos pessoais, que tenho mais de  trinta sermões confeccionados e ainda não pregados. Ele me disse: “É, você é um gênio!”, com sarcasmo. Respondi que não sou. É que leio a Bíblia todos os dias (leio-a duas vezes por ano, e em versões diferentes) e leio para aprender. Nesta prática, de repente um texto me pega de jeito, e até me deixa desconfortável. Ou me traz um consolo enorme. Medito nele, ele me ensina, e vejo que posso repartir com meu povo. Sou um pregador bastante limitado, mas leio para ser alimentado, e o Espírito me ensina a Palavra. Aí posso ensiná-la.

Um obreiro que queira ser melhor precisa ter comunhão com a Palavra de Deus. Precisa internalizá-la. Ao comentar o texto em que João come o livro que o anjo lhe dá (Ap 10.9-10), Eugene Petersen fez esta observação: “João faz isto: come o livro – não apenas o lê. O livro agora é parte de seus terminais nervosos, de seus reflexos, de sua imaginação”[i]. O livro passa a fazer parte do ser do obreiro.

Os pastores precisamos voltar às Escrituras, ao amor por elas, a ter prazer em lê-las. Precisamos, acima de tudo, aplicá-las em nossas vidas. Elas nos darão firmeza, equilíbrio e uma espiritualidade sadia. Não prescindo da oração nem de outras disciplinas espirituais. Mas demoro-me aqui porque vejo que livros de auto-ajuda e de técnicas empresariais têm se tornado a leitura mais importante na vida de muitos obreiros. E deve ser a Bíblia. Não para pregá-la, mas para se alimentar. Como lembra Petersen: “a revelação é sempre formativa – não ficamos sabendo mais; passamos a ser mais”[ii].

Uma espiritualidade segura e equilibrada nunca trará auto-indulgência ao obreiro. “Você sabe que eu sou muito franco e tenho uma personalidade muito forte”, disse um obreiro, certa vez, numa discussão com a esposa. Esta lhe disse, “na lata”: “Você é um cavalo!”. Coitado do cavalo! Entrou de graça na história! E o pior foi que tivemos que ouvir o bate-boca conjugal. Homens de bom senso prezam as opiniões das esposas a seu respeito. Mas tomar uma dessas, da esposa, é duro. O pior é que foi na frente dos outros.

Precisamos chamar nosso pecado de pecado. O gênio forte de que alguns se orgulham é pecado. A convicção espiritual de que outros também se orgulham pode ser apenas rabugice azeda. A pessoa é belicosa e chama sua agressividade de “zelo santo”, o que cheira a blasfêmia. Há obreiros que se colocam acima da crítica. São “ungidos do Senhor” e isso lhes garante o direito de dizerem o que querem, como querem, de serem como querem. Não aceitam ser questionados e nunca acham que erraram. Sempre se autojustificam. Nesta prática acabam se fechando até para a ação do Espírito Santo. Confissão de pecado, arrependimento, pedido de transformação, essas coisas devem fazer parte do cotidiano de nossas orações, se queremos ser melhores. E muitas vezes virão acompanhadas de lágrimas.

Uma espiritualidade sadia e equilibrada é necessária porque temos a obrigação de ser o modelo para o rebanho e de ser como Cristo: “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo” (1Co 11.1). “Imitadores” é um substantivo derivado do verbo mimétai, de onde vem “mimetismo”, o fenômeno do camaleão, calango, bicho-pau. É assumir o ambiente. Paulo queria mimetizar Cristo. É um desafio para nós. Não são nossas esquisitices que o povo deve imitar, e sim nosso caráter cristão.

 

  1. É PRECISO CULTIVAR UM SENSO DE EQUIPE

Em Lucas 10.1 lemos que Jesus enviou os setenta (ou setenta e dois) discípulos em duplas. À primeira vista, parece má estratégia para vender um produto (como os marqueteiros chamariam o evangelho). Se enviasse individualmente alcançaria o dobro dos lugares! Mas com isto ensinou que a obra não é para ser feita individualmente, e sim em equipe. Esta é outra área em que precisamos melhorar, saber conviver com os colegas.  Como há carreira solo! Como há gente que julga que é a pessoa mais iluminada do mundo, e despreza trabalhar em equipe e em subordinação! Como surgem ministérios concorrentes e como brotam inimizades no serviço de Deus! Por causa da vaidade pessoal. Ministros assim não mostram maturidade espiritual.

No tempo em que uma bola de futebol era muito cara, a garotada ficava dependente de quem tinha uma bola para todos jogarem. Muitas vezes o garoto era ruim de bola, que dava dó. Batia na orelha dela. Mas só havia jogo se ele fosse escalado, senão levava a bola para casa. Daí veio a expressão “o dono da bola”, aplicada ao garoto que se escalava. Há muito dono da bola no reino. Já vi gente levar uma caravana para uma assembléia para votar em seu nome. Finda a eleição, que perdeu, tal pessoa pegou a caravana, colocou no ônibus e foi-se embora. Não havia mais nada a fazer ali. Já vi muito executivo e presidente de instituições que, ao deixarem o cargo, nunca mais cooperaram. Deixaram de estar na proa e Deus os livrasse de irem para o convés ou para a popa! É gente que só coopera se for o “primeirão”. A obra de Deus tem sofrido muito por causa da vaidade pessoal. É preciso crucificar diariamente o ego, pois ele é forte, sempre se levanta e nos leva a atitudes ridículas como essas.

O desejo de ver o nome estampado em gás néon é uma das maiores evidências de infantilidade emocional. Um obreiro que é espiritualmente sadio busca apenas servir. Parece-me que ninguém quer lavar pés, mas muitos querem ter os pés lavados. Uma prova disso é o amor por títulos, hoje, no cenário evangélico. Havia um colega que me ligava e dizia: “Isaltino, aqui é o Pr. Dr. Fulano de Tal”. E eu sorria, sozinho. Era-me indiferente como ele me tratava, mas uma pessoa que trata um colega de atividade pelo prenome e se apresenta pelos títulos deve ter uma autoimagem fraquíssima. Precisa impressionar os outros. O colega se sentia incomodado comigo.

A obra é do Senhor e nós somos servos, não sócios. O brilho deve ser o dele e não o nosso. Buscar holofotes não é apenas doença emocional. É usurpação espiritual. A glória deve ser sempre de Cristo. Um obreiro que queira ser melhor há de querer o progresso do reino. Saberá que sozinho pouco poderá fazer, e saberá também que sua omissão prejudicará a obra. Terá noção de grupo e fará parte de um todo.

Sempre me impressionou a declaração de Henry Martin (por isso a mencionei várias vezes, em palestras), ao desembarcar nas praias da Índia: “Aqui, deixem-me gastar por Deus”. Cada obreiro cristão deve buscar seu lugar, mesmo que este não lhe dê nenhuma expressão social (afinal, ele quer brilhar ou fazer brilhar a luz de Cristo?). Encontrando-o, deve querer se gastar por Deus ali. Muitas vezes parece que o obreiro não quer servir a Cristo, mas quer usar o evangelho de Cristo para seu benefício, seja o material, seja o emocional. Algumas vezes os dois. Quando a visão de cooperação se sobrepõe à individualidade, o obreiro prova que cresceu. Um obreiro que queira ser melhor não se porá como “o rei da cocada preta”, mas trabalhará em equipe.

Um obreiro que queira melhorar sufocará seu desejo de poder. Numa obra excelente, o economista e sociólogo indiano Parag Khanna disserta sobre as possibilidades dos países emergentes entrarem no primeiro mundo. Ele é duro com a América Latina, à exceção do Chile. Lembra que a América Latina cultua caudilhos, e criou uma cultura que dá espaço a personalidades que procuram desconstruir as instituições, para melhor se imporem[iii]. Entendi, então, porque tantos, entre nós, combatem as instituições. Porque têm um desejo muito grande de poder. Este traço cultural latino-americano se alia ao desejo pecaminoso que vem desde o Éden: “Sereis como Deus” (Gn 3.5).  Quem deseja notoriedade e o poder que dela advém está dominado pelo pecado dos primeiros pais.

Deus disse a Jeremias: “E procuras tu grandezas para ti mesmo? Não as busques…”(Jr 45.5). Deus estava fazendo algo fantástico, um grande movimento histórico, e seu propósito eterno se cumpriria, mais uma vez. Que Jeremias se inserisse no projeto histórico de Deus, sem muita preocupação com seu mundo pessoal. Como isto nos serve! Busquemos coisas grandes para o reino, e insiramo-nos no propósito eterno de Deus. Um homem que está crescendo ama a obra de Deus mais do que a sua obra pessoal. Ama mais a Deus que a si mesmo. Não privatiza o reino de Deus, fazendo dele um negócio particular.

Nunca deveríamos nos esquecer das palavras do Batista: “Convém que ele cresça, e que eu diminua” (Jo 3.30). Não faz sentido usar o evangelho para buscar projeção pessoal. É uma das situações mais insólitas que conheço. Gente que envaidece espiritualmente. É-me tão absurdo que tenho dificuldades em comentar, pois não  me parece algo racional, sobre o que se pode teorizar.  Puro non sense. Um obreiro que deseja ser melhor diminui mais e Cristo cresce em sua vida.

 

3. É PRECISO TER BASES TEOLÓGICAS SADIAS

Ter bases teológicas sadias não é a mesma coisa que ser um teólogo. É cultivar o desejo de crescer teologicamente de maneira sadia. É ter bases teológicas equilibradas que lhe permitam formar uma cosmovisão teológica e bíblica, para conseguir interpretar o mundo pela Bíblia. Estou cansado de ouvir e ver leituras da Bíblia por Marx, Freud, Piaget, Darwin e Comte. Quando são feitas por incrédulos, não há de que se queixar nem se admirar. Mas há obreiros interpretando Jesus e a Palavra de Deus pela cultura secular.  Estão olhando pelo lado errado do binóculo. Ando sem paciência com a sociologização da Bíblia, efeito da Sociologia da Religião, que está substituindo a Teologia em muitas instituições de ensino teológico.  Aliás, talvez seja por isso que as igrejas as estão abandonando. E os vocacionados também.

Há os que interpretam o reino por livros repletos de conceitos seculares ou experiências de gurus evangélicos. Há obreiros acríticos que aceitam tudo sem questionar. Isto é evidência de uma fraqueza teológica terrível. Precisamos de obreiros que tenham uma cosmovisão bíblica, ou seja, que saibam interpretar o mundo à luz das Escrituras. Além de interpretar e pregar corretamente a Palavra, o obreiro precisa saber ler o mundo e os tempos por ela, e não lê-la pelo nosso tempo. Isso é ter bases teológicas sadias. A Bíblia é juíza, e não ré. Uma base teológica sadia faz saber isto.

Uma teologia sadia leva a amar a igreja. Há gente que não faz outra coisa na vida a não ser apedrejar a igreja. Um obreiro precisa amar a Igreja de Cristo em geral e a igreja de Cristo em particular, a igreja local. “Todos os vossos atos sejam feitos em amor”, disse Paulo (1Co 16.14). Principalmente o ato de servir. Aliás, somos chamados para servir e não para senhorear o reino. Nosso serviço se qualifica pelo amor. Podemos servir por status, carência afetiva (o líder sempre é estimado, a não ser que ele seja uma calamidade  total), por dinheiro, ou qualquer outro motivo, mas o único motivo válido é o amor ao que se faz e a quem se serve. Servimos a Deus, sim, mas servimos o seu povo. Um obreiro que queira ser melhor deve amar a  Deus, sim, mas deve amar a Igreja e sua igreja local. Ela não é seu ganha-pão. É parte de sua vida e de suas emoções. Deve ser sua paixão. Mas para ser uma paixão segura e equilibrada é preciso que ele tenha uma base bem sólida sobre o que seja a igreja e seu valor dentro do propósito eterno de Deus.

Há obreiros que, por absoluta ausência de consistência teológica, não têm noção do que seja o evento teológico “igreja”. Alguns sequer sabem como conduzir um culto. Já preguei em cultos sem ordem alguma. Era um ajuntamento de números especiais, com uma barulhada terrível, e depois de uma hora e meia de bumbumpraticumbumprugurundum me davam a palavra para pregar a um auditório esgotado, desejoso de ir embora. Os que não queriam ir embora estavam tão excitados que não acompanhariam nenhum raciocínio. Numa série de conferências evangelísticas, após a mensagem que eu pregava vinha o grupo de louvor para mais uma sessão de rock pauleira, que quebrava qualquer impacto que a mensagem pudesse ter produzido. Tenho visto cada coisa! Após uma mensagem de consagração vir uma coreografia de meninas trombando umas com as outras mostra um desconhecimento do que seja o culto, do que seja adoração, de qual seja o propósito da proclamação do evangelho. “Os pais das meninas gostam” foi a cândida explicação para este ato que comentei. Por dar ao povo o que povo gosta, ao invés de dar o que Deus prescreve em sua Palavra, é que agora está surgindo “o culto das torcidas”.  Há um culto para cada time de futebol. Naquele dia, o culto é apenas para os torcedores daquele clube, e as pessoas vêm com o uniforme do seu time. Façam-me o favor! Estão transformando o culto em circo de horrores, ao invés de adoração ao Deus Santo manifestado em Jesus de Nazaré.

O que é uma igreja, teologicamente falando? Sobre o que ela repousa e qual é sua missão? O que é o culto, qual é seu propósito? O que é, exatamente, um pastor? Não quero as respostas que andam pelas cabeças de alguns que estão reinventando a roda. Mas o que a Bíblia diz? O que nossos antepassados, heróis na fé (e não os empresários eclesiásticos contemporâneos) apregoaram?

Em quarenta anos de ministério, muitas vezes me desanimei. Algumas vezes pensei em desistir. Passei por períodos de entressafra espiritual. Sem ânimo, espiritualmente seco, muito frustrado. Respeito aqueles para quem o ministério é só bênção! Deve ser maravilhoso viver somente nas montanhas (o que nem Jesus conseguiu), mas infelizmente, muitas vezes andei pelos vales, pelas depressões dos caminhos ministeriais. Mas nestes momentos de sequidão, a visão teológica que eu formara me segurava. Eu tinha noção bem firme do que eram a pessoa e a obra de Jesus. Tinha noção do que era o evento teológico “igreja”, e  qual o papel de um pastor. O que me manteve na caminhada, além da inefável graça de Deus, foi ter bases teológicas seguras. Porque teologia não é especulação. É a estrutura óssea da convicção espiritual. Teologia não é especulação, mas são convicções. Em 2Timóteo 1.12, Paulo diz “… eu sei em que tenho crido”. Não diz “eu sinto o que tenho crido”, mas “eu sei em quem tenho crido”. “Sei” é o verbo oída. Seu sentido geral é mesmo de gnoskô. Os dois verbos se intercambiam no NT grego e não é correto dizer que significam coisas diferentes. Mas parece que gnoskô tem mais o sentido de “conhecer”. Por isso, Taylor diz: “Quando oída e gnoskô se distinguem, este é o verbo do conhecimento por experiência subjetiva, oída o de nítida percepção mental, conhecimento objetivo”[iv]. Desde meus tempos de seminário que o uso deste verbo por Paulo, nesta passagem (quando fiz um trabalho, em Exegese de Grego, sobre o “conhecimento de Paulo”), me prende a atenção. Não era algo intuitivo ou que o apóstolo recebera por informação. Era algo enraizado em sua experiência, vivencial, que ele provara. Teologia não é especulação, mas uma reflexão profunda sobre Deus, sobre Cristo, com a orientação do Espírito Santo. Ela produz convicção espiritual, e não soberba. Ela dá equilíbrio espiritual. Permaneci na fé e no ministério mesmo nas andanças pelos vales porque refletira sobre a fé cristã. Internalizara verdades que passaram a fazer parte de minha vida. Não estão em minha mente, mas elas são “eu”.

Valorizamos muito a ação, e pouco a reflexão. O pastor que estuda é desdenhado, chamado de “teólogo” (que, infelizmente, entre nós soa como sinônimo de desocupado ou o que se preocupa com coisas inúteis). Para muitos, o pastor deve ser um gerente ou um executivo, e não uma pessoa que reflita, pense, analise, pondere. Talvez esta seja uma das razões pelas quais nossas igrejas são tão superficiais. Elas são agitadas, mas sem raízes. Porque quem as lidera se agita, mas não se preocupa em criar raízes.

Se você deseja ser um obreiro melhor estude. Estude a Bíblia, estude livros consistentes (não “Sabrina” e “Contigo” evangélicas), busque raízes. Valorizo muito a piedade espiritual e o espírito de serviço. Mas reconheço que a sombra projetada pelo ministério de Paulo foi muito maior que a de Pedro. Nós podemos nos preparar mais e melhor. É questão de valorizar a nossa missão.

 

4. É PRECISO SER GENTE MELHOR

Spurgeon comentou sobre uma pessoa que falecera: “Espero que a grama ao lado seu túmulo cresça, porque enquanto ele foi vivo nada floresceu ao redor dele”. Naquele tempo não havia o “politicamente correto”, uma espécie de caIa-boca com que se tenta amordaçar a discordância. Por isso o “Príncipe dos Pregadores” se expressou assim. Mas esta expressão sua me lembra o rei Jeorão: “Morreu sem deixar de si saudades; e o sepultaram na cidade de Davi, porém não nos sepulcros dos reis” (2Cr 21.20).  Não foi chorado pelo povo e não foi sepultado com os reis do passado. Que tristeza! “Morreu sem deixar de si saudades”. Há obreiros que quando saem de uma igreja não fica deles saudade alguma. Nada floresceu ao redor deles. Alguns têm um ego tão grande que não sobra oxigênio para mais alguma coisa respirar junto deles. Um crente me disse, certa vez, que o tema predileto do seu pastor era… seu pastor.

Há obreiros que se tornam criaturas humanas insuportáveis. Ninguém consegue conviver com eles. Escondidas na capa de santidade e sacralizando seu jeito de se relacionar mal como sendo um dom recebido de Deus (“não sirvo aos homens, mas a Deus”) tais pessoas se tornam um fardo para quem convive com elas. “Nabal é o seu nome, e a loucura está com ele…” (1Sm 25.25) pode se aplicar a elas. Felizmente, muitos desses obreiros, à semelhança de Nabal, são casados com uma Abigail, que atenua suas falhas (eu sou casado com uma mulher mais suave que Abigail e ela tem me civilizado, coitada!), mas algumas mulheres não têm vocação para Abigail. Há obreiros que as suas próprias esposas não os aguentam. Nem os seus filhos. A família pastoral se destrói porque o obreiro não cresceu como gente, como membro de uma família. Deve ser muito difícil ser casada com um semideus ou ser filho de um. Como uma criança pode crescer sadiamente se o pai, para falar com ela, se vale de uma voz solene, como se estivesse no púlpito? Um colega me apresentou o filho, menino de dez anos: “Este é o irmão Fulano”. Há colegas que vêm me apresentar a esposa e dizem: “Esta é a irmã Fulana, minha esposa”. Acho que ele tem medo que eu tome alguma intimidade com ela e já coloca uma barreira entre mim e ela. Mas, gente, até para apresentar a família, o colega se vale de uma estrutura eclesiológica! Aquelas pessoas não são vistas por ele como sua família, mas são vistas como se fossem os irmãos da igreja! Na hora do almoço, o pastor pede à esposa que ore, mas nestes termos: “A irmã Fulana vai orar”. Isso é tão esquisito!

Meu colega, não sou ninguém, não sou nada. Não tenho autoridade para dar conselhos, mas posso repartir algo. Sou bem casado e após 40 anos de casamento ainda ando abraçado com minha esposa. Amo-a hoje mais do que no início do casamento. Dedico a ela meus livros. Não sou nada e tenho muitas falhas. Mas tenho acertado no lar. Por isso lhe digo com respeito e com amor: nunca sacrifique sua família no altar do sucesso ministerial. Sua esposa não é a “primeira dama” da igreja. É sua “primeira ovelha”, no sentido de que deve ser a pessoa de quem você mais deve cuidar. Nunca aconteça de você dizer como a sunamita: “… e me puseram por guarda de vinhas; a minha vinha, porém, não guardei” (Ct 1.6). Guarde a vinha que lhe confiarem, mas guarde a sua. Guarde sua família. Guarde seu casamento. Guarde seus filhos.

Seja crítico consigo mesmo. Analise sua vida. Queira crescer. Quando vejo que João foi apelidado por Jesus de “Boanerges” (filho do trovão) e que no fim de sua vida se tornou “o apóstolo do amor”, vejo que há esperanças para mim. Nós podemos ser pessoas melhores. Ser fiel a Deus e leal ao evangelho não significa ser uma pessoa horrível para se conviver.

Aqui me detenho pouco. Sei que esta é uma área delicada para abordar e creio que já disse o suficiente. É uma das áreas em que mais luto e sei que é bastante melindrosa. Isto basta. Por favor, reflitam sobre isso.

 

CONCLUSÃO

Heráclito (540-480 a.C.) foi o filósofo do “tudo flui”. Disse ele que não podemos tomar banho duas vezes no mesmo rio. Banhamo-nos, saímos e quando voltamos àquele rio já se foi, porque as suas águas se foram. É outro rio. Deveria ser assim conosco. Nunca deveríamos ser as mesmas pessoas, de um dia para outro. Cada diz deveríamos acrescentar algo de novo e de bom à nossa vida. Algo que nos mudasse como pastores, pregadores, maridos, pais e como colegas. Mas que nos mudasse para melhor, “ao estado de homem feito, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13).

Nos meus tempos de jovem havia um corinho que dizia: “Sempre melhorando, sempre melhorando, sempre melhorando no Senhor!”. Alguém dirá que ele cheira a naftalina. Bem, gostar ou desgostar de cheiro é questão subjetiva. Mas a mensagem do corinho é relevante. Um obreiro sério deverá ser melhor a cada dia. Devemos desejar ardentemente ser um obreiro melhor. Lutemos para isso. Submetamo-nos, cada dia, à graça de Deus. E que ele assim nos torne obreiros melhores.

 

 



[i] PETERSEN, Eugene. Maravilhosa Bíblia – a arte de ler a Bíblia com o Espírito. São Paulo: Mundo Cristão,  2008, p. 25.

[ii] Ib. ibidem, p. 40.

[iii] KHANNA, Parag. O segundo mundo – impérios e influência na nova ordem global. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008, p. 194.

[iv] TAYLOR, Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 3ª. edição, 1966, p. 317, parágrafo 732.

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