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O GOVERNO DA IGREJA E AS LIDERANÇAS ECLESIÁSTICAS

  • por

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho

Apresentado no I Congresso de Eclesiologia da Convenção Batista do Estado de São Paulo, 16 de junho de 2012

 

Não é uma queixa, mas eis um tema traiçoeiro. O preletor corre o risco de cair no lugar comum, dizendo o óbvio, que todos já sabem. Ser banal é terrível. Por outro lado o preletor pode cair na tentação de querer ser original, dizendo novidades para mostrar erudição. Seriam novidades que ele forçaria. Também é ruim para um preletor ser “novidadeiro”. Nutro muitas reservas com as pessoas que descobrem na Bíblia aquilo que nunca alguém viu antes, em dois mil anos de cristianismo.

Não quero ser trivial nem ecoar o refrão “Nunca antes na história dos batistas”. Receio ser medíocre tanto quanto ser delirante. Falarei sobre governo da igreja para pessoas de convicções congregacionais. Sou congregacional. Que se pode esperar, a não ser uma palestra com rumo definido e teor assumido? Quem veio aqui tem uma posição definida, como eu, e espera reforço de sua posição. Então, direi o que já sabem. Mas sou honesto. No meu tempo de estudos em seminário, pesquisei para um trabalho sobre fé e razão, tendo que trabalhar os verbos gregos gnoskw e oida. Tinha um ponto de vista e após a pesquisa mudei-o. Há pouco tempo publiquei em OJB um artigo sobre a unção com óleo, em Tiago. Mudei o ponto de vista que sustentei em um comentário sobre Tiago que teve três edições em português e até foi traduzido. Exporei argumentos com honestidade.

 

  1. UMA AFIRMAÇÃO PRELIMINAR

Fiz profissão de fé congregacional, mas sou obrigado a afirmar que não vejo no Novo Testamento uma eclesiologia definida. Não me parece haver uma forma de governo cabalmente explicitada, da qual se diga: “É isto e fora disto está errado”. As denominações de posições diferentes inferem sua legitimidade doutrinária das Escrituras. Não há uma sistematização do Novo Testamento sobre o governo da igreja e as lideranças eclesiásticas. Até mesmo porque tínhamos igrejas e não a Igreja. E algumas delas surgiram sem a liderança apostólica na sua organização.

Muito do que temos hoje é evolução e acréscimo, mesmo porque no Novo Testamento a Igreja engatinhava. Somente em Atos 15 é que ela entendeu que era algo diferente do judaísmo. O concílio que define a separação entre cristianismo e judaísmo se deu cerca dos anos 48/50 D.C. [i]. Isto sucedeu entre quinze e dezessete anos após o evento de Pentecostes, ocasião em que vejo surgir a Igreja funcionalmente. Como potência, na linguagem de Aristóteles, vejo-a surgir na eternidade, no coração de Deus (Ef 1.4). Como ato, ainda seguindo Aristóteles, vejo-a surgir no dia de Pentecostes.

Quando digo evolução e acréscimo não quero dizer que o que temos é adulteração do ensino neotestamentário. É que as circunstâncias mudaram. A Igreja não possuía templos e reunia-se nas sinagogas ou nas casas. Hoje temos templos. Não havia a obrigação de ser uma pessoa jurídica e sua organização era bem simples. E ela se expressou de maneiras diferentes. Em uma de suas boas obras, Wayne Meeks[ii] mostra que a ekklesia foi formatada por quatro modelos de sua época. O primeiro foram os lares (o que fica bem claro nas cartas paulinas). O segundo foram as associações voluntárias, como os clubes, grêmios e associações que floresceram no Império Romano. As pessoas se agrupavam por profissões (Paulo foi morar com Áquila e Priscila, porque eram skenopoioi, “fazedores de tendas” – At 18.3), sociedades secretas (o que explicaria elementos do gnosticismo dentro da Igreja, o que João combateu) e até por local de nascimento, como as casas de cultura nordestina em S. Paulo, por exemplo. O terceiro foi a sinagoga, onde ela mais se firmou porque o cristianismo era apenas uma seita judaica, chamada “Caminho” (At 22.4). O quarto foi a escola filosófica. Paulo valeu-se da Escola de Tirano (At 19.9). Segundo um historiador, ele a alugou, e talvez os alunos de Tirano tenham assistido algumas de suas preleções. O “Texto de Beza” dá até a hora das preleções de Paulo. Tirano encerrava suas preleções às 11 horas, e Paulo começava as suas às 11h30min e ia até as 16h30min [iii]. Parece que Apolo tinha também sua escola (o que explicaria a argumentação de Paulo em 1Coríntios 3). Meeks mostra esses quatro tipos diferentes de reuniões como modeladores de uma Igreja ainda não definida nem teologicamente (como Atos 15 mostra) nem em termos de modelo.

Esses modelos foram expressões da forma da Igreja. E eram geridos por processos administrativos diferentes. Algumas questões, então, se tornam relevantes. Quem administrava a igreja em uma casa? Alguém de fora ou alguém da casa, principalmente quando a igreja era doméstica, ou seja, da família e dos agregados, como os escravos? Quem comandava a igreja na Escola de Tirano? Paulo? A congregação? Timóteo e Erasto estavam com ele e ele os enviou em missão à Macedônia, e não a igreja, como em Atos 13.2-3.

É difícil definir com exatidão, com base em Atos e nas cartas de Paulo, o modelo de governo da Igreja, ainda que isto deixe meio escandalizados os congregacionais. E volto a afirmar: sou congregacional. Não defendo a pulverização de modelos de igrejas, mas reconheço-os existentes.

 

  1. UM POUCO DAS ORIGENS DA IGREJA

Não me refiro às origens teológicas, que isso é outro tema. Falo das origens em termos de modelo de governo. Temos que ir às Escrituras, antes do surgimento da Igreja. Ela não surgiu num vazio teológico e histórico. À luz de Mateus 21.43 ela é herdeira e sucessora de Israel [iv]. Sua ligação com o judaísmo é tão óbvia que sequer necessita ser comentada. Como ato, ela surge no Pórtico de Salomão (At 3.11). Suas sementes foram lançadas, muitas vezes, nas sinagogas, onde Jesus pregava, e mais tarde os apóstolos pregaram. Isto é importante para entendermos seus oficiais e sua administração. Ela não surgiu como um ministério do templo, mas como produto do ministério de um homem que não nutria grande simpatia pelo templo. Em João 5 há uma festa em Jerusalém, ele sobe à cidade, mas não vai ao templo e sim ao tanque dos miseráveis, Betesda.

O que era a sinagoga? Quem eram seus oficiais? Ela surgiu no período do cativeiro babilônico, para manter vivo o judaísmo. Não tinha a pompa e liturgia do templo. Nada de corais, trombetas, e liturgia pomposa com vestimentas sacerdotais. Nem mesmo um sacerdote era necessário. O termo hebraico era qahal, com sentido religioso em Números 15.15, e aludia a todos os homens com mais de vinte anos, que tivessem sido circuncidados. O termo grego é synagogê, de onde veio sinagoga. Seu sentido é religioso, embora nela funcionasse o tribunal e a escola judaica. Era administrada por um corpo de anciãos (Lc 7.3-5). As funções se distribuíam da seguinte maneira: (1) O principal ou chefe (At 18.8 e 17). Ele dirigia os cultos e designava as pessoas que orariam e exortariam o povo (At 13.15); (2) Oficiais menores que entregavam o Livro a quem o iria ler e pregar, e depois os punha no lugar (Lc 4.20). Esses oficiais também aplicavam as penas decididas pelo tribunal; (3) Os que administravam as esmolas. Mateus 6.2 ecoa isto. A pessoa dava esmola, mas fazia questão que os administradores anunciassem quanto tinham dado. Em Atos 6, o surgimento dos diáconos tem a ver com esta função da sinagoga. As viúvas e os órfãos eram cuidados pela sinagoga. Convertidos, a Igreja os assumiu. Mas ainda não tinha funções definidas para cuidar das muitas tarefas que surgiam.

A sinagoga foi a descomplicação do mosaísmo sacerdotal. Não havia sacrifícios, mas, a influência sacerdotal era forte, nos bastidores. O templo centralizava a vida religiosa dos judeus. Ela começou no exílio babilônico, após a destruição do primeiro templo. Foi levada para a Palestina por Esdras. Servia até de pousada aos viajantes. Era administrada por um leigo, não por um oficial do templo, que era eleito pela comunidade. A Igreja herdou o estilo de culto da sinagoga, e não o estilo do templo. Muita gente hoje quer uma liturgia calcada no Antigo Testamento, mas a Igreja copiou o estilo da sinagoga, no Novo Testamento.  O culto consistia de leitura das Escrituras (depois, nas igrejas, se liam as cartas com recomendações dos apóstolos), oração e exposição das Escrituras (Lc 4.16-30). A Igreja se espalhou pelo mundo gentílico através das sinagogas (At 13.13-15). Tudo indica que também herdou dela muito do sistema de governo. É preciso ter isso em conta.

 

3. A ADMINISTRAÇÃO DA IGREJA NASCENTE

A administração da Igreja nascente não é delineada claramente no Novo Testamento. A primeira voz a se ouvir é a de Pedro (At 1.15). Foram suas as primeiras recomendações (At 1.15ss) e foi seu o primeiro sermão da Igreja, mas os outros onze estão com ele, o que dá a ideia de uma responsabilidade comum, não centralizada nele (At 2.14). Parece que Atos 2.37 também evita dar a Pedro a proeminência, ao mencionar “os demais apóstolos”.  Os cristãos foram surpreendidos pelo Espírito Santo. A Igreja começa de modo anárquico, sem uma liderança proeminente. Os capítulos seguintes de Atos mostram ações esparsas da Igreja, sem uma coordenação humana. Em Atos 12, a Igreja é apenas gente reunida na casa de Maria. Infere-se de Atos 12.17 que nenhum dos apóstolos estava presente.

Atos 20.17-38 é um texto que nos brinda com três títulos eclesiásticos (digamos assim). Antes de vê-los, registremos que é o único discurso de Paulo, em Atos, dirigido à Igreja. Os demais são sermões evangelísticos ou apologéticos, dirigidos aos judeus ou aos gentios. Há uma força no texto: é uma recomendação à Igreja. Os três títulos devem ser vistos dentro desta perspectiva. Seu uso não pode ser acidental. No versículo 17 temos “presbíteros” (presbíterois). No versículo 28, os presbíteros são os que os que “o Espírito vos constituiu bispos (episkópois), para pastoreardes (poimaínein) a igreja de Deus”. Para comentar o uso tríplice de termos neste versículo, valho-me das palavras de um não congregacional, John Stott, um teólogo episcopal: “… É evidente que esses termos se referem às mesmas pessoas. ´˜Pastores´ é o termo genérico que descreve a função” [v]. Na continuação, Stott diz que os termos presbíteros e bispos se referiam ao mesmo ofício.

A ideia de bispos alude ao trabalho de supervisão na igreja local (não na Igreja ou sobre um grupo de igrejas). Seria mais ou menos como o trabalho que um pastor faz, em sua igreja, como presidente, o trabalho de supervisão de todas as atividades. Em 1Timóteo 3.1-7, o bispo ensina e governa a casa de Deus. Não é, ainda, um supervisor regional ou supervisor de um grupo de pastores. Sua função é eclesiástica local. Em Tito 1.5-11, o presbítero (v. 5) é um bispo (v. 7), que ensina a igreja (vv. 9-11), e não um supervisor regional ou pessoal. Só mais tarde é que os bispos se tornarão responsáveis por um grupo de igrejas de determinada região. E não foi nos tempos neotestamentários. É uma derivação do uso do termo, não a sua instituição bíblica.

A ideia de presbíteros alude à dignidade pastoral, pois seu significado é o “ancião”, não de uma classe auxiliadora do pastor. Os anciãos eram a liderança jurídica e administrativa das cidades antigas, inclusive em Israel. Presumia-se que eram sábios, pois a idade, se não nos torna imunes aos erros, pelo menos deve nos ajudar a errar menos. Provérbios 16.31 e 20.29 aludem aos cabelos brancos como dignidade. Em 1Timóteo 4.14 Paulo recomenda a Timóteo  que desenvolva o dom (oficio) que lhe foi dado por profecia, “com a imposição de mãos dos presbíteros”. O dom pastoral de Timóteo foi reconhecido profeticamente pelos presbíteros (pastores). Em 1Timóteo 5.17-19, o presbítero deve ser remunerado pelo trabalho que realiza, o da pregação e do ensino. Se o faz bem, deve receber salário dobrado. O presbítero é o pregador e o mestre da igreja, nesta afirmação.

Sendo bispo, pastor e presbítero aspectos diferentes da mesma função, havemos de reconhecer que há outra função mencionada, distinta desta que foi trifacetada, os diáconos. Embora Atos 6 não os mencione explicitamente (embora a presença do verbo “diaconar”), este é o capítulo bíblico que tem sido visto como sua instituição. Quanto a isto não tenho muitos problemas. Biblicamente, esta função, que não é criação neotestamentária, parece-me remontar a Úxodo 18.13ss, com os auxiliares que aliviam a carga de Moisés. Úxodo 18.21 inclusive guarda semelhança com Atos 6.3 no tocante às exigências morais dos diáconos. Não são servidores das três mesas (embora possam fazê-lo), mas são desembaraçadores do pastor em várias atividades que consomem seu tempo. O pastor de Atos 6 deveria se dedicar à oração e à pregação, e os diáconos a outras atividades que tomavam tempo dos pastores, mas não eram fundamentais. Hoje os pastores cuidam de muitas coisas não fundamentais e pedem à igreja que ore por eles. Há pastores que são mais executivos e administradores que pregadores e sacerdotes do povo (orando por ele).

Sei, sem ironia e sem maldade, que há pastores batistas mais conhecedores da Confissão de Fé de Westminster que da Declaração Doutrinária da CBB, e que poderão me julgar simplório e maçante, mas é a esta que recorro: “Há nas igrejas, segundo as Escrituras, duas espécies de oficiais: pastores e diáconos” [vi]. Assumo esta afirmação como expressão mais neotestamentária que qualquer outra.

Ditas estas coisa, reconheço outras. Em 1Timóteo 5.17 parecer que Timóteo pagava os salários do pastores. A recomendação do pagamento aos presbíteros foi feita a ele. E em 1Timóteo 5.19-22 parece que Timóteo tinha autoridade sobre os demais pastores, principalmente nos versículos 19-20. O versículo 22 pode ser entendido como se Timóteo consagrasse os pastores ou como uma recomendação geral. Mas é bom ser honesto e reconhecer que a primeira interpretação não pode ser vista como absurda. Mantenho-me congregacional, mas reconheço que, no mínimo, a questão pastoral não era tão solta como hoje, em que a consagração ao ministério depende mais do querer de uma igreja, que por vezes força a barra para consagrar alguém. Nas recomendações paulinas parece-me haver alguma forma de coordenação externa à igreja. Pelo menos no tocante ao ministério.

 

4. E EFÉSIOS 4.11?

É o texto em que se mencionam apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. A colocação de um hífen entre pastores e mestres é desnecessária e dá outro sentido ao texto, ignorando a preposição kaí, no grego, que tem função conetiva. Há algumas observações a se fazer aqui.

A primeira: é incerto que Paulo esteja discorrendo sobre ofícios que deve haver numa igreja ou na Igreja. É mais correto reconhecer que ele entende, nestes termos, as funções múltiplas do ministério cristão. Desta maneira, traçar balizas eclesiológicas aqui, em termos de funções, soa-me precário.

A segunda é que é necessário reconhecer que Israel estava edificado sobre sacerdotes e profetas, e a Igreja sobre apóstolos e profetas. Os profetas eram homens da Palavra. O sacerdote era o homem do sacrifício. No Novo Testamento não há mais sacrifício a se fazer. O apóstolo testemunhava do Homem Que Efetuou o Grande Sacrifício (At 1.21-23). Evangelistas, pastores e mestres complementavam este trabalho. Não é certo que houvesse um oficial chamado “evangelista” na Igreja. O único homem assim chamado era diácono (At 21.7). Isto invalida ver aqui classes de obreiros.

A terceira é que Paulo não está discutindo a forma administrativa da ekklesia, mas falando das funções que devem ser desempenhadas para a maturidade do Corpo de Cristo. Estabelecer aqui uma eclesiologia é um pouco temerário.

Desta maneira deixo claro que não vejo aqui base para a existência de apóstolos nas igrejas atuais. O critério para apóstolos não me parece ser Efésios 4.11 e sim Atos 1.21-22 e 1Coríntios 9.11, ou seja, ter convivido com Jesus.

 

5. E COMO FICAMOS HOJE?

Custei a chegar aqui, mas julguei que precisava caminhar dentro das Escrituras para tratar das questões a mim atribuídas. O que temos hoje?

Tudo começa com a pulverização do conceito de Igreja. E com a pulverização da fonte de autoridade em matéria de religião. Centrei-me no Novo Testamento para andar com segurança agora. Porque hoje as bases não são mais neotestamentárias, mas seculares, sociológicas e sentimentais.

Os modelos variam muito. Há variações que destoam de nossa posição, mas como afirmei, são variações possíveis, pela inferência a se fazer. Entendo a possibilidade do sistema episcopal, embora a veja como remota. Entendo a possibilidade de sínodos, se Atos 15 for entendido como uma reunião sinodal. O sistema presbiteriano me soa possível, embora o termo me pareça inadequado, mas o sistema de democracia indireta parece-me válido. Por indireta quero dizer que a congregação delega poderes a alguns. Mutatis mutandis  é o que fazemos com nossas eleições políticas.

Mas há variações que seguem a cabeça do fundador da seita ou um modelo administrativo secular. Este me parece ser um dos nossos maiores problemas. Temos copiado modelos do mundo. Há igrejas que estão estruturadas como corporações de negócios seculares, e nas quais o pastor precisa saber mais Administração que Teologia. Deve conhecer mais de atividades empresariais que de Bíblia. Mas alguns modelos são cristãos e não seculares. Não embrulharei todos no mesmo pacote. Por isso que fiz a ressalva no parágrafo anterior. Falta-nos, mais que definições nesta minha palestra, a correta teologia da Igreja.

(1) Há o modelo de pastorado colegiado. Não tive esta experiência, embora tivesse pastoreado igrejas com vários pastores. Tenho receio de ser injusto na avaliação, e de algum colega se sentir magoado por receber uma crítica que não lhe cabe. Mas em algumas igrejas observei que toda a administração é feita por pastores, privando o chamado laicato (termo inadequado, mas vá lá, entendam o que quero dizer) da administração. Priva também a liderança pastoral de ser instruída por gente bem mais capaz que ela, por ser versada em Administração. Meu maior receio é o de surgimento de um clero e o banimento dos chamados leigos. A clericarização da administração eclesiástica parece trazer dois problemas: (1º.) A arrogância, que acaba vindo porque a pessoa ocupa todos os espaços (os espirituais e os administrativos) e, (2º.) O empobrecimento do ministério, que acaba se ocupando do que não é de sua alçada. Não digo que isto sucede com quem exerce esta prática. Digo que ela me vem à mente. Talvez acontecesse comigo, se eu estivesse como chefe de uma equipe de pastores colegiados. Pode ser que não passe pela cabeça dos outros.

(2) Vejo o modelo apostólico, mais comum em igrejas neopentecostais. Mencionei-o anteriormente, en pasant. Detenho-me agora. Conversei com alguns adeptos deste modelo para entender sua compreensão. Assim alinhavo alguns pontos que deduzi: (1º.) Alguns querem apenas o poder. Há obreiros denominados apóstolos que dão embasamento bíblico à sua posição e que têm conteúdo teológico. Pelo menos conheço um assim, em Macapá. Ele dá rumo à igreja e tem uma visão global do reino, mas alguns deixaram bem claro, não tanto com afirmações, mas com atitudes, que queriam apenas o poder. Explica-se pelo valor do termo. Os apóstolos eram a autoridade doutrinária na Igreja. Um dos critérios apresentados para a formação do cânon do Novo Testamento era que a obra fosse apostólica. Três livros não são de apóstolos. Lucas e Atos são de um gentio, inclusive. Mas, como mostram as tendências mais recentes em estudos de Canônica, Lucas teria sido o evangelho preparado a pedido de Paulo, que necessitava de uma obra para seu ministério junto aos gentios. Atos secunda o terceiro evangelho, dando grande espaço aos gentios [vii]. Hebreus seria a exceção, mas teve o referendo apostólico. O apóstolo era inquestionável em doutrina. E parece que isto tem sido buscado. O sujeito não quer contestado. Tem uma visão eclesiológica imperial.

Tenho observado que o termo “apóstolo” não tem sido usado no sentido de “enviado” (“missionário”), mas de autoridade. Barnabé foi chamado de apóstolo (At 13.34 e 14.4 e 14), por causa de sua atividade missionária. Era um enviado. Da mesma maneira Paulo foi assim chamado, e ele viu a Jesus (1Co 9.11). Hoje, o apóstolo não é um enviado ou um missionário, mas um superior. Ele está no topo da cadeia de poder. Pelo menos estava até surgir o “Patriarca”. Este termo, Patriarca, não é usado no sentido dos patriarcas de Israel, mas no sentido de Papa, como na Igreja Ortodoxa. Os neopentecostais, na ânsia de domínio, já têm um Papa. Sem entender este sentido, e pensando em termos veterotestamentários, em Macapá já temos “Pai de uma multidão”. Lá parece que todo mundo quer ser apóstolo. Como há “Ministério Apostólico”! Corremos o risco de ter mais apóstolos em Macapá que pirarucu no rio Amazonas. Temos tuxauas demais e índio de menos.

(3) Há o modelo episcopal, que até pouco tempo era o mais acentuado entre neopentecostais e alguns pentecostais. O suporte era o mesmo, o de comando. Ficou defasado porque com o surgimento de “apóstolos” o bispo passou ao segundo lugar. Não importa o termo que use: bispo, apóstolo, paipóstolo, patriarca, pai de multidão, ou outro que ainda seja inédito. O que vejo é luta por domínio.  O que me choca é a luta por espaço, grandeza, mando e manuseio de recursos financeiros. Uma organização de sigla CPF (Conselho Federal de Pastor) promete orientar os pastores a “se ligar a uma Convenção onde o Presidente Fundador fica com cargo vitalício sem poder ser exonerado” [viii]. A motivação não é teológica. É mundana, de busca de dinheiro. Talvez minha visão seja amarga, mas não a faço com alegria. Desgosta-me, até.

Sintetizo estes pontos: receio que muita eclesiologia não tenha fundamentação teológica, mas pessoal. O pano de fundo me tem sido mostrado como luta por poder e não por serviço. Não é para ir para o campo, à frente de batalha, mas ficar no conforto. Tem a ver com dinheiro e não com paixão pelo evangelho. Não tenho visto, não tenho ouvido e não tenho lido fundamentação teológica e bíblica, mas apenas o uso dos termos, em muito do chamado “neopentecostalismo autônomo” para que o fundador ou proprietário da seita tenha liberdade de ação. É como muito da liturgia judaica que é calcada no Antigo Testamento, com a presença dos símbolos judaicos. É bem forte e relação entre alguns modelos autocráticos de governo eclesiástico e a rejudaização doutrinária. O Novo Testamento socializa a liderança. O Antigo a elitiza, criando um clero. O pano de fundo de muito do caos eclesiástico não é doutrinário, mas a tentativa de absolutismo.   Um tipo de despotismo esclarecido. Só que os mentores deste despotismo não são os pensadores iluministas, mas líderes neopentecostais.

Voltando à segunda observação do ponto anterior: um dos absurdos é que tais apóstolos prescindem da Palavra e se tornam, muitos deles, a Palavra. Sua palavra é Palavra. Não estou convencido da necessidade de apóstolos hoje, e bastante convencido de que o termo hoje está desconectado do seu sentido bíblico. As bases bíblicas para sua existência não me soam muito consistentes.

 

6. MAS HÁ OUTROS MODELOS!

Sim. Há. Porque há uma balburdia incrível no cenário evangélico. Anos atrás fiz um discurso aos formandos da Faculdade Batista de Teologia do Amazonas sob o título “Quando a igreja troca a teologia pela tecnocracia” [ix]. Comentei que estamos copiando técnicas e modelos seculares ao invés de regermos a Igreja pelas Escrituras. Por isso a multidão de modelos. Os batistas somos fascinados por administração, mesmo com um longo histórico de juntas, colégios e seminários falidos. Copiamos modelos, usamos termos imponentes, e continuamos fazendo omelete sem quebrar os ovos, mantendo tudo como antes. Assim surgem Comitês, Conselho Gestor, Conselho de Líderes, Conselho Administrativo, etc. Alguns com poder restrito à recomendações à assembleia (na realidade, são as antigas Diretorias). Outros com poder decisivo. Aqui me parece haver algumas dificuldades.

(1) A primeira é o banimento da congregação do centro decisório. Em Atos 6.1-7, foi a multidão, a ekklesia, que escolheu os sete. Em 2Coríntios 2.6-7, Paulo se satisfaz com uma recomendação que fosse assumida pela maioria da ekklesia. Quando a congregação abdica ou lhe é cassado o direito de decidir, tenho o receio de que estejamos fugindo do modelo bíblico. Ao mesmo tempo reconheço haver problemas com a decisão por toda a igreja local. Não me comam o fígado, mas por vezes penso que a democracia eclesiástica não é o melhor modelo de governo da igreja. Eximo-me dos termos duros e não os sustento, mas reconheço haver dose de verdade em Pondé, em sua crítica à democracia: “Outra característica problemática da democracia é sua vocação tagarela, como dizia o conde de Tocqueville.  Nela, as pessoas são estimuladas a ter opinião sobre tudo, e a afirmação de que todos os homens são iguais (quando a igualdade deve ser apenas perante um tribunal) leva as pessoas mais idiotas a assumir que são capazes de opinar sobre tudo… Uma coisa que nosso conde percebeu é que o homem da democracia, quando quer saber algo, pergunta para a pessoa do seu lado, e o que a maioria disser, ele assume com verdade. Daí que, no lugar do conhecimento, a democracia criou a opinião pública” [x]. Assim é que pessoas que não entendem de nada tomam decisões em nossas igrejas. Muita igreja já foi atravancada em algum projeto porque alguém que não tinha noção de coisa alguma fez diferença na votação. Muitos pastores têm optado por um modelo não participativo porque veem que há pessoas que não deveriam opinar. Por isso muitos têm, em sua vontade de querer fazer as coisas andarem, escolhido um modelo episcopal ou gerencial que ponha a decisão nas mãos de poucos. Eu mesmo, muitas vezes, me frustrei com a visão de alguns membros de igreja que mexiam cordéis em bastidores, mas com uma visão de Bartimeu, antes que Cristo o curasse. Por isso entendo esta postura.

(2) O segundo é o efeito perverso do banimento da congregação do centro decisório. Isto tem um efeito negativo, o de levar parcela significativa a não ascender na vida eclesiástica administrativa. A mesmice de pessoas pode levar uma comunidade a se fossilizar, não recebendo mentes novas. Tem outro efeito negativo que é o de não envolver toda a congregação na vida da comunidade, fazendo de boa parcela dos crentes apenas consumidores religiosos e pagadores de conta, e não agentes humanos da vida eclesiástica. Isto não me parece muito consoante ao espírito do Novo Testamento.

(3) O terceiro elemento a considerar é que grupos pequenos também erram e não são garantia de verdade, sequer de acerto.  A aristocracia (no sentido de Platão) eclesiástica não é garantia de que as coisas darão certo. O regime militar brasileiro tinha um centro decisório diminuto, mas também errou. Ditadores erram. Cúpulas erram. Desta maneira, atribuir os males à multidão de pessoas é problemático. É verdade que “na multidão de palpiteiros há confusão”, mas na “multidão de conselheiros há segurança” (Pv 11.14b). Assim como não sei se o que chamamos de democracia eclesiástica é o melhor modelo de governo de igreja, não sei se a aristocracia eclesiástica é melhor. Sei que alguém perguntará qual é minha posição, afinal. Para ser honesto: aceito as atuais regras do jogo do qual estou participando, de que a congregação se governa. Mas vejo falhas no sistema.

Reconheço, como quem assumiu o modelo congregacional, como alguém que tem pressupostos congregacionais, que este é o modelo que mais parece claro no Novo Testamento. Vejo suas limitações. Mas honestamente, e sem resvalar para uma falsa espiritualidade, anima-me ver que a preocupação da Bíblia não é nos mostrar modelos perfeitos, mas ensinar-nos que o homem de Deus seja perfeito. Qualquer modelo apresentará problemas. A questão básica, mais importante, me parece ser as pessoas. Elas é que devem fazer a diferença. Tenho receio do culto à instituição e do culto à forma, um vírus presente na cultura batista. Vejo uma estreita conexão entre pessoas e alguns modelos. Há modelos autoritários que atrairão determinado tipo de pessoas que não querem prestar contas aos demais, que têm um complexo de divindade e que não aceitam ser contestadas, e que nem sempre são muito honestas. Uma questão que sempre considero quando avalio um modelo: quem gere as finanças? A quem se prestam contas? Qual é a relação entre o líder (seja pastor ou o nome que tenha) e o dinheiro? Quanto é eclesiologia e quanto é mercantilismo religioso?

Frustra-me ver pessoas sem noção das coisas tomando decisões, por vezes, por capricho, em nossas assembleias. Mas ainda acho este sistema mais bíblico, a comunidade decidir, que um pequeno grupo aristocrático, seja o termo que se lhe dê. Eu o aceito.

 

7. ALGUMAS OUTRAS QUESTÕES

Questões avulsas, sem uma linha argumentativa que as costure, mas que estão presentes em nosso meio hoje.

(1) Esposa de pastor é pastora? Em alguns grupos neopentecostais, a esposa do pastor é pastora. Não é mais vocação, é parentesco. A questão é mais financeira que teológica. Não há base bíblica alguma, mas são dois salários na mesma família, vindos da igreja. Há igrejas constituídas como capitanias hereditárias. São da família. Há pouco tempo, um pastor declarou, com todas as letras, que a igreja que ele organizara era uma herança para os filhos.

(2) Diáconos são gerentes ou departamento do pessoal? Os diáconos têm sido motivo de muitas piadas entre os pastores. Tive má experiência com alguns diáconos aqui em S. Paulo, mas as boas experiências em Manaus foram maiores, e os bons diáconos de lá me foram mais numerosos que os daqui, que caíram no esquecimento. Mas há muita injustiça com os diáconos. Eles não são, necessariamente, administradores da igreja. Podem sê-lo, mas não é o escopo do seu ministério. Eles são desembaraçadores do pastor, para que ele se dedique mais a seu ministério.

(3) Pastores são pastores para todas as igrejas ou sua consagração deve ser apenas local? Pastor é um ofício bíblico e por isso o pastor deve ser pastor para qualquer igreja. Igrejas que consagram pastores apenas para seu âmbito restrito estão criando problemas para outras. Reconhecem-nos como apto apenas para seu jardim, mas esquecem-se que o jardineiro irá embora, um dia, e encontrará outros jardins. É sempre conveniente cultivar a visão do todo. Visão parcial gera dificuldades. Boa parte de nossos problemas como denominação está na perda de visão do todo. É o culto ao umbigo.

(4) Há pastoras? É correto consagrar mulheres ao ministério? No final de uma palestra abordar este assunto é garantia segura de que ele não será comentado. Não o farei. Mas deixo uma observação que notei: não me deram, ainda, nem um argumento bíblico sequer, mas apenas culturais. Aceito o que foi decidido por igrejas e concílios. Não direi que o Espírito Santo passou longe deles. Mas não me sinto seguro para dizer que mulher pastora tem bases neotestamentárias. Não invalidarei consagração de nenhuma pastora, mas não participarei da consagração de uma, até ter argumentos bíblicos. Penso que a postura de muitos aqui tem sido mais que cultural que bíblica. Parece-me que é a cultura secular que tem ditado a agenda da igreja, ao invés de servir de moldura para o ambiente em que ela serve. Temos pouca Sola Scriptura  e muita Sola cultura. [xi]

 

CONCLUSÃO

Procurei abordar as questões que me deram. Dediquei mais tempo ao que não me deram, a parte bíblica. Mas julguei necessário firmar algumas bases que são meus pressupostos. Não me considero um oráculo de Yahweh e, evidentemente, posso estar equivocado em vários pontos. Digo como Paulo: “E penso que também tenho o Espírito de Deus” (1Co 7.40).

Não sou um iluminado, mas procurei, com sinceridade, expor-lhes minha visão. Se lhes for útil, glória a Deus. Se não for, recolham o que for em parte. E deem graças a Deus que lhes permitiu usar o dom da paciência e da misericórdia.

 

 

 

CITAÇÕES



[i] TENNEY, Merril. Tempos do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2010, p. 258.

[ii] MEEKS, Wayne. The first urban Christians. London: Yale University Press, 1983, p. 133ss.

[iii] ROHDEN, Huberto. Paulo de Tarso – o maior bandeirante do evangelho. S. Paulo: Martin Claret, 2005, p. 217.

[iv] Para mais detalhes sobre esta firmação, sugiro, respeitosamente, a leitura de WRIGHT, Ernest. O Deus que age. S. Paulo: ASTE, 1967. Principalmente no capítulo “O que Deus tem feito”, a partir da argumentação dele do uso tipológico que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento.

[v] STOTT, John. A mensagem de Atos. S. Paulo: ABU Editora, 1ª. edição, 1994, p. 365.

[vi] DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA DA CBB, Item VIII, tópico 4.

[vii] Para quem deseja entender mais esta posição recomendo o livro de David Alan Black, Por que 4 evangelhos?, editado pela Vida, 2004, principalmente a partir da página 26.

[viii] Conforme folder “Convite do 1o. Congresso de Colação de Grau de autoridade Eclesiástica e, Unção e Consagração de Pastores, Bispos e Apóstolos do Amazonas e Estados Limítrofes, em Manaus” (transcrito como encontrado).

[ix] Publicada, infelizmente de maneira estropiada, na Revista teológica, do STBSB, ano XIII, no. 17, dezembro de 1998.

[x] PONDÉ, Luiz Felipe. Guia politicamente incorreto da filosofia. São Paulo: Leya, 2012, p. 50.

[xi] Devo esta argumentação a David Wells, que a aborda mais extensamente em Coragem para ser protestante, livro editado pela Editora Cultura Cristã, 2010.

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