Isaltino Gomes Coelho Filho
Levei o livro de Diogo Mainardi, “A quedaâ€, em uma viagem de dois dias pelo interior do Amapá. Pensei que ele me ocuparia nos momentos vagos. Mas li-o em duas horas, porque é atraente e fácil de ler. O tema é o nascimento de seu filho, Tito, que por um erro da dottoressa F, médica que estava com pressa de sair do seu trabalho, pois era sábado, nasceu com paralisia cerebral. O menino não fala, não tem gestos coordenados nem anda normalmente. Mainardi narra os 424 passos que ele conseguiu dar, uma vez, sem cair. O livro se estrutura ao redor desses 424 passos, cada um deles comentado com elementos da cultura de Veneza, onde Tito nasceu.
O livro comove, desconcerta, e é uma aula de cultura, um passeio da Veneza renascentista, via hospitais e médicos norteamericanos, até Ipanema, onde moraram alguns anos, antes do regresso a Veneza. Neste tour cultural passa-se por Ezra Pound, Auschwitz, Dante, Abott e Costello, U2, Proust, Freud, Humpty Dumpty, Rembrandt, Pietro Lombardo, Giacomo Leopardi, pintores, escultores, Shakespeare e muitos mais. E nos passos, um pouco mais de Tito. Comoveu-me uma frase de Mainardi. Ele andava com o filho por Veneza, e este pisava em falso, indo a cair. Diz ele: “Quando isso ocorria, eu era tomado por um sentimento de felicidade. Impedir uma queda de Tito em Veneza dava um sentido à minha vida†(p. 114). Ele passou a viver em função do filho deficiente e se sentia feliz em ser-lhe útil. Sua missão cósmica e existencial era cuidar do filho. Este era o sentido de sua vida!
Comparei-o ao programa de extermÃnio nazista dos doentes e inválidos que foi estimulado por Alfred Hoche, que calculou no livrete “O aniquilamento da vida inútil de ser vivida†o custo de um “idiota†para a Alemanha. Era o bastante para manter uma famÃlia de cinco pessoas. Os inúteis eram um estorvo ao III Reich. Até 1 de setembro de 1941 foram mortos 70.273 inválidos, na Alemanha, o que permitiu uma economia de quase 250.000 reichsmarks (moeda da época) diários. O relatório diz até quantos quilos de batatas e quantos ovos foram economizados com esses inúteis. Hitler aplicou a teoria de Hoche na eliminação de todos os não produtivos, parasitas da Alemanha. O alvo era uma nação eugênica. Como alguns pretendem hoje, com a ideia de eutanásia indiscriminada, que é mais econômica e emocionalmente menos desgastante que cuidar de deficientes, doentes e terminais.
Também pensei: “Como ele conseguiu escrever um livro assim?â€. E por que só vim conhecer um livro desses agora? Se o tivesse lido há quarenta anos, aprenderia muito do seu estilo literário. Como ele estruturou a obra desta maneira? Além da aula de cultura, uma aula de estrutura literária. Como se aprende vendo quem sabe fazer!
Voltemos a Tito e à realização de seu pai em viver em função dele. O nascimento de um retardado (o termo é de Mainardi) nos choca e desgosta. O rabino Kushner teve um filho que nasceu com progéria, envelhecimento precoce. O menino morreu com 14 anos, aparentando ter 80. No livro em que tratou do assunto, mesclando-o com a vida de Jó (o tÃtulo em português é “Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?â€), Kushner comentou que as pessoas se indagam “Por que Deus permitiu isso?†ou “Como Deus deixa que isso aconteça?â€. Diz ele que são perguntas incorretas. A certa é: “Que tipo de sociedade devemos ser para que pessoas assim se sintam bem, protegidas e cuidadas?â€. Não é questionar o porquê do problema, mas criar condições para minimizá-lo. Não é transferir a culpa para Deus, mas assumir a responsabilidade do problema.
Queremos um mundo de felicidade, como se o universo existisse para nos tornar felizes, e Deus fosse nosso servo, a quem damos ordens e cuja função é nos alegrar e dar coisas boas. Agimos como crianças mimadas e mal educadas que não querem ser obstadas. Não sei se foi o tÃtulo de um livro ou um comentário de capa que vi, nestes termos: O universo conspira para que você seja feliz. Como uma pessoa pode ser tão fútil? Como há gente que compra livros assim?
O mundo nos é hostil (Gn 3.17-19). O bom mundo de Deus (Gn 1.31) foi pervertido pelo pecado, pela nossa Queda. A criação está corrompida e geme debaixo do poder do mal (Rm 8.19-22). Mesmo sem usar a BÃblia, qualquer pessoa de bom senso sabe que o universo não liga a mÃnima para nós. É uma infantilidade a busca de felicidade, o desejo de que tudo colabore para nosso bem-estar, e que há milhares de anjos aguardando uma ordem nossa para nos servir. É preciso parar de ser criança em busca de prazer e pensar que Deus nos pôs neste mundo com uma missão muito mais ampla que a busca de gratificação e de lazer.
O verdadeiro sentido da vida não nos é externo ou alheio a nós. É dado por nós. O sentido de minha vida, como indivÃduo, tem sido, há cinquenta anos, desde minha conversão na adolescência, servir a Jesus. Rejubilo-me em servi-Lo, e me assusto quando penso que um dia poderá vir a debilidade fÃsica e não poderei servir meu Senhor. Sou feliz por ser servo, por ser pastor, por trabalhar para Ele. Não troco isso por nada. Mesmo nas “rebordosas†da vida tem sido jubiloso servi-Lo.
Mainardi não me soa evangélico. Kushner é judeu. Mas eles entenderam o que muitos dos nossos não entenderam. Quando nossa vida encontra uma causa a qual servir, pessoas a quem amar e a se dedicar, ela é riquÃssima. Lembremo-nos de Jesus: “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou…†(Jo 4.34). E de Paulo: “Nem por um momento considero a minha vida como valioso tesouro para mim mesmo, contanto que possa completar a missão e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do Evangelho da graça de Deus†(At 20.24). A vida é se dar.
Um cristão de verdade não espera conspiração do universo para ser feliz. Nem presume ter milhares de anjos sob seu comando. Quer ser útil, quer ajudar, quer fazer alguma coisa. Enfada-me a futilidade espiritual de tantos hoje! Se guardassem sua futilidade consigo, eu as privaria de minha rabugice. Mas compõem “canções†(é assim que se chama agora), escrevem artigos e livros falando sobre como Deus prometeu nos fazer felizes neste mundo e como devemos exigir nosso direito à felicidade. Amor, dedicação, serviço, engajamento, uma causa que seja raison d’être, nada disso é falado.
O livro de Mainardi se chama “A quedaâ€. Mas é uma queda para cima. Da dor de um filho que será deficiente até à morte, à descoberta de que esta é sua missão, cuidar dele. Como Kushner: a questão não é filosofar ou teologar, queixando-se, mas perguntar-se: “Onde eu me encaixo nesta história para melhorar a situação?â€. Porque é assim que age um cristão: “Senhor, não tenho queixas nem quero choramingar. O que eu faço para ser útil?â€.