OS SETE PECADOS CAPITAIS – 2
A IRA
Isaltino Gomes Coelho Filho
Mira y López classificou a ira como “o gigante rubro”. Junto com o medo, o amor e o dever ela forma os Quatro gigantes da alma, título de sua obra clássica. Se o orgulho, que é o culto a si mesmo, encabeça a lista dos pecados, caminhando pari passu à ambição (“Sereis como Deus”), a ira é, cronologicamente, na Bíblia, o segundo pecado: “Caim ficou furioso” (Gn 4.5), e “Então, o Senhor perguntou a Caim: Por que te iraste?” (Gn 4.6). A ira está presente desde os albores da humanidade. E sempre com maus resultados.
A ira é o pecado que gera o assassinato (1Jo 3.15). Costuma-se dizer que ela é má conselheira, porque priva a pessoa da razão e a coloca sob o domínio dos instintos. A pessoa perde a noção de valores, de regras de conduta, e assume um comportamento ensandecido. A ordem de Saul para que Doegue matasse 85 sacerdotes e depois homens, mulheres, crianças, bebês e até os animais de Nobe, mostra como a ira enlouquece (2Sm 22.17-19). Este trágico episódio na vida de Saul deixa claro que a ira leva a pessoa a agir como animal descontrolado. Ela perde toda a sua racionalidade.
Sucedeu a mesma coisa com seu xará, no Novo Testamento. Atos 9.1 registra que Saulo “respirava” ameaças contra os discípulos de Jesus. O grego é empneo, cuja forma verbal pode levá-lo a ser traduzido, sem forçar a situação, como “bufava”, respiração típica do animal selvagem. Curiosamente, Jesus lhe afirmou que ele se comportava como animal, na expressão “recalcitrar contra os aguilhões” (At 26.14), a figura do boi que escoiceava o ferrão que o impelia no serviço. O zelo religioso de Saulo se transmutou em ira descontrolada (“cada vez mais enfurecido contra eles”, disse ele – At 26.11). Muito zelo religioso nada mais é que ódio, ira, fúria contra os discordantes. É “zelo, mas não com entendimento” (Rm 10.2). É uma advertência muito séria porque, em algumas ocasiões, a defesa da fé ou do que a pessoa julga ser a doutrina correta, é feita com ódio. Algumas apologias exsudam ira. Como disse alguém: “Nunca os homens fazem o mal com tanto entusiasmo como quando o fazem em nome de Deus”.
É triste, mas é verdade: temperamentos não controlados pelo Espírito (nada a ver com o livro homônimo – é que a expressão é correta) usam o evangelho como pretexto para dar vazão à sua carnalidade. A violência verbal desancando irmãos que pensam de maneira diferente não é santidade. É pecado. Lembra-me de um personagem de Umberto Eco, ironizando as querelas teológicas dos cristãos: “percebi quanto os cristãos podem se esfolar uns aos outros, por uma simples palavra” (Baudolino, p. 35). Certa vez, preguei em uma igreja e expendi um conceito que o pastor julgou ser arminiano. Tornei-me, aos seus olhos, “cão pirento”, como se diz no Amapá. Ele se recusou a me levar à saída, após o culto, e virou-me as costas quando fui cumprimentá-lo. Foi zeloso com sua doutrina, e iracundo no seu procedimento. Um exemplo da típica espiritualidade deformada, mas chamada, muitas vezes, de “ira santa”. O episódio de Jesus expulsando os vendilhões do templo é o trecho bíblico mais apreciado pelos santos iracundos e o eixo hermenêutico que dá suporte à sua postura.
A virtude que se antepõe à ira é a paciência. Que não deve ser confundida com resignação. O melhor termo para ela é makrothymia, uma extraordinária capacidade de suportar situações adversas. Não é superthymia, grande capacidade, mas makrothymia, enorme capacidade. Como um macromercado é maior que um supermercado. O termo alude a uma enorme disposição de sofrer o mal sem revidar. Jesus foi macrotímico: “Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a boca; como um cordeiro que é levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca” (Is 53.7).
Tiago orientou seu público: “Chamamos felizes os que suportaram aflições. Ouvistes sobre a paciência (makrothymia) de Jó e vistes o fim que o Senhor lhe deu. Porque o Senhor é cheio de misericórdia e compaixão” (Tg 5.11). Fala-se da paciência de Jó, mas ele não foi paciente, no sentido de passividade de aguentar calado. Queixou-se por todo o livro. Mas manifestou uma enorme capacidade de suportar tudo. Um bom modelo. Há igrejas que se dividem por causa da ira dos crentes, por absoluta falta de makrothymia. Há dissensões na denominação pelo mesmo motivo. Suportar o mal está fora de moda. O negócio é “bateu, levou”. Aliás, um bispo televisivo avisou à Globo, certa vez, que com eles não tinha “essa de dar a outra face”. Com eles era “bateu, levou”.
A ira é pecado, e não virtude. Sua ausência, sim, é virtude. “A ninguém devolvei mal por mal” (Rm 12.17), e “Abençoai os que vos perseguem; abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12.14). A troca de ofensas, tão amiúde na liderança evangélica, mormente pela mídia, é uma vergonha para o evangelho. Não parecem santos, mas arruaceiros de bar.
Peçamos graça a Deus para vencermos nossos sentimentos agressivos contra as pessoas, e que sejamos cada vez mais parecidos com Jesus. Caim se irou e matou seu irmão, porque era do Maligno (1Jo 3.12). Jesus pediu perdão pelos inimigos, porque era o Filho de Deus (Lc 23.34). Mais tarde, mostrando que se tornou filho de Deus, Estêvão pediu que seus assassinos fossem perdoados (At 7.60). Os filhos de Deus não se regem pela ira, e com a graça do Senhor a superam. Cultivam o perdão, ao invés de acalentar a ira.